Capítulo quatro - O meu
catalisador
Não obstante ser, de
natureza, aplicado as minhas tarefas, sempre necessitei de um impulso especial
para desenvolver novas faculdades e energias. Agora encontrara o meu
catalisador. Não podia ter achado outro mais poderoso e que atuasse com maior
força. Exigia a atuação de todas as minhas energias em um ritmo continuamente
acelerado e com o esforço cada vez maior.
Assim, tive de renunciar ao verdadeiro centro da minha
vida: a família. Atraído e estimulado por Hitler, em cujas mãos estava, eu
contava que somente com o trabalho, que não me deixava o momento de repouso.
Hitler sabia como estimular os seus colaboradores a que despendessem os máximos
esforços de que fossem capazes. Uma das suas frases era: "O homem cresce
com seus mais altos ideais".
O durante os vinte anos de
minha reclusão na prisão de Spandau, perguntaram-me várias vezes o que eu teria
feito se ele tivesse compreendido o autêntico modo de ser de Hitler e a
verdadeira natureza do poderio estabelecido por ele. A resposta era banal e
deprimente ao mesmo tempo. Não tardou que se tornasse imprescindível a minha
função de arquiteto junto à crítica. Ainda não tinha 30 anos e via à minha
frente as perspectivas mais animadoras com que possa sonhar um arquiteto.
No afã no meu trabalho eu
tinha um acúmulo de problemas, é nessas circunstâncias não podia dar atenção a
certas irregularidades de somenos importância. Ao escrever estas memórias, vi
acentuar-se minha surpresa, chegando até à consternação, quando verifiquei que
antes de 1944 eu não dispunha quase nunca de tempo para refletir sobre meu
próprio esforço. Jamais me detivera de maneira reflexiva sobre minha própria
existência. Hoje, ao recordar o passado, tenho às vezes a impressão de que
naquela época eu estava pairando um pouco acima do chão, desprendendo-me nas
raízes que me tinham atado à terra e deixando-me dominar por forças estranhas a
mim.
Nesse olhar retrospectivo, o
que mais me angustia é sentir que a inquietação do naqueles dias estivesse
relacionada, fundamentalmente, com os meus deveres de arquiteto, com o
afastamento das doutrinas de Tessenov. No entanto, sinto que, pessoalmente,
nada tinha a ver com os fatos, quando sabia que os judeus, os maçons, os
social-democratas, as testemunhas de Jeová, que me rodeavam, eram condenados e
perseguidos como feras. Para mim bastava não participar, pessoalmente, daqueles
acontecimentos.
O modesto camarada do partido
era educado no sentido de ficar incapaz de entender o sentido da grande
política. Acima desse nacional-socialista havia outros que respondiam por ele,
de modo que não lhe fosse dado pedir explicações a respeito da sua própria
responsabilidade. Toda a estrutura partidária funcionava para evitar,
completamente, que surgissem conflitos de consciência, do que resultava uma
absoluta esterilidade nas conversas de trocas de idéias entre pessoas que
pensavam sobre o mesmo critério. Era inútil proceder de modo contrário a
opiniões uniformes.
Mais grave era que cada um
tivesse que limitar a sua responsabilidade à própria esfera de atividade, sendo
isso expressamente exigido. Cada qual se movia dentro da própria esfera, fossem
médicos, jurisconsultos, técnicos, soldados ou camponeses. As raízes de nossa
tendência a aceitar esse sistema teriam de ser pesquisadas em nossa própria
juventude. As raízes de nossa ação e pensamentos provinham de um Estado
autoritário, e que, além disso, em uma época na qual as leis da guerra tinham
enrijecido ainda mais o caráter da subordinação. Talvez tenha sido essas
experiências que prepararam nossa maneira de pensar, como se fôssemos soldados,
um modo de pensar outra vez propício ao sistema hitlerista. Trazemos dentro do
nosso sangue a semente de uma ordem rígida. Comparado com essa ordem, o
liberalismo da República de Weimar,
parecia-nos frouxo, discutível e de nenhum modo merecedor de confiança.
Para manter sempre contato com o meu contratante, instalei em
meu escritório em um estúdio de pintor na Behrenstrasse, a poucas centenas de
metros distante da chancelaria. Meus auxiliares, tudo jovens, trabalhavam de
manhã à noite. A refeição do meio-dia era substituída por alimentos leves.
Afinal, esgotados, terminávamos o dia às dez horas da noite, comíamos algo mais
sólido no Pfälzer Weinstube, nas redondezas, onde ainda uma vez analisávamos os
trabalhos feitos durante o dia.
Sem dúvida, tive de esperar
pelos grandes encargos. Hitler confiou-me a execução de trabalhos de ocasião,
apressados, pois me parecia que ele achava que minha principal característica
estava em executar com rapidez as incumbências recebidas. Nos primeiros meses
do ano de 1933, havia sempre uma multidão a solicitar audiência ao Führer. Essa
gente vinha sempre em grupos, e na sala não se apropriava mais para o trabalho.
Hitler, já não suportando a situação, disse:
- É muito pequeno este local!
Com seus 60 m2 dá somente para um dos
meus auxiliares. Onde vou sentar, quando houver convidados especiais? Talvez
neste cantinho? Ele esta mesa de despacho tem o tamanho exato para servir ao
chefe do meu escritório.
Hitler encarregou-me de
transformar uma sala que dava para o jardim em um novo gabinete de despachos.
Esteve aí cinco anos, considerando entretanto esse local como provisório. Mas
não tardou a achar insuficiente seu gabinete no novo edifício da chancelaria do
Reich, construído em 1938. De acordo com suas indicações e apoiando-me em seus
projetos, deveria estar edificada em 1950 uma chancelaria definitiva. Nessa
chancelaria, tinha-se previsto para Hitler e sucessores, nos séculos futuros,
um salão de trabalho, com 960 m2, 16 vezes maior do que o gabinete do
antecessor.
O antigo gabinete não deveria
ser mais utilizado. Hitler queria ir sem embaraços ao novo "balcão
histórico", que eu mandara fazer com a máxima urgência, a fim de
mostrar-se melhor à multidão.
- A janela era muito incômoda
- disse-me ele, satisfeito. - Eu não era
visto de todos os lados. Afinal de contas, eu não iria estar me debruçado sobre
o peitoril...
O arquiteto da primeira
edificação da chancelaria, professor Eduard Jobst Siedler, da Escola Técnica de
Berlim, formulou objeções àquela intromissão, que, segundo ele, atentava contra
o direito de autor da obra. Hitler rechaçou sarcasticamente aquela objeção,
dizendo:
- Siedler alterou toda a
Wilhelmsplatz. O edifício mais parece feito para os escritórios de uma fábrica
de sabão do que para a sede de um órgão do governo, o centro do Reich. Supõe
ele que teria de construir também o balcão?
Mas Hitler consentiu em que
fosse ressarcido o dano do professor, encarregando-o de uma obra.
Poucos meses depois, eu
mandei fazer barracões em que se alojassem os operários de uma autopista que se
iniciara. Hitler criticou os alojamentos até então utilizados e quis que eu
apresentasse um projeto que pudesse ser utilizado para todos os acampamentos.
Hitler preocupou-se com os detalhes dessa obra-modelo e pediu-me que o
informasse da reação dos trabalhadores.
Enquanto se executava a reforma
da sua residência de chanceler, Hitler usou a do seu secretário de Estado
Lammers, no último pavimento do edifício oficial. Aí eu era seu frequente
comensal, no almoço ou na ceia. À noite, era habitual o encontro do pessoal que
acompanhava constantemente Hitler: o chofer Schreck, que estava no serviço
havia muitos anos; o porta-estandartes da guarda pessoal das SS de Hitler, Sepp
Dietrich; o chefe de imprensa, doutor Otto Dietrich; os dois
ajudantes-de-ordens, Brückner e Schaub, como também Heinrich Hoffmann, fotógrafo
de Hitler. Os ministros apresentavam-se uma vez ou outra. Não via Roehm ou
Streicher. Ao contrário havia freqüentemente Goebells e Goering. Já naquela
época estavam excluídos todos os funcionários que atendiam a Hitler. Por
exemplo, me chamava a atenção o fato de que inclusive Lammers, apesar de ser o
dono da casa, jamais fora convidado, com certeza por muito boas razões.
Muitas vezes, Hitler
comentava os acontecimentos do dia. Gostava também de dizer como fizera para
desvencilhar-se do cerco da burocracia, que ameaçava tolher as atividades da
chancelaria do Reich.
- Nas primeiras semanas
apresentaram-me qualquer assunto insignificante para minha solução. Todos os
dias, eu encontrava em minha mesa um monte de papéis, cuja altura não diminuía,
não obstante os meus esforços em assiná-los. Afinal, cortei essa insensatez,
radicalmente. Se continuasse assim, jamais conseguiria resultados positivos. Eu
não disponha de tempo para refletir. Quando me neguei a examinar os processos,
disseram-me que isso iria concorrer para a demora de decisões importantes.
Somente depois disso foi que eu pude pensar em assuntos de grande alcance, que
eu tinha de resolver, determinar o curso dos acontecimentos, em vez de serem os
funcionários que iriam decidir sobre minha maneira de agir.
Também falava, às vezes, de
suas viagens:
- Schreck era o melhor
motorista que se possa imaginar. Alcançava os cento e setenta, usando o
compressor. Viajávamos sempre a grande velocidade. Mas, nos últimos anos,
recomendei a Schreck que não fosse além dos oitenta. Impossível imaginar o que
ocorreria, se acontecesse alguma coisa comigo. Os carros norte-americanos são
uma verdadeira porcaria, comparados com um Mercedes. O motor não aguentava o
esforço, começa a falhar depois de algum tempo, e os proprietários tinham de
ficar detidos com cara de bobos à margem da estrada.
À noite, montava-se um
primitivo projetor de filmes, para a exibição do noticiário semanal, e de uma
ou duas fitas para distração. No princípio, os criados não sabiam manejar o
aparelho. Às vezes, as figuras apareciam invertidas na tela, ou o filme se
rompia. Naquele tempo, Hitler suportava essas contrariedades mais tranquilo do
que os seus acompanhantes. Hitler encarregava Goebells de escolher os filmes,
os quais, em geral, eram os que estavam sendo exibidos nos cinemas de Berlim. Hitler
preferia filmes de amor comum, informativos ou frívolos. No entanto tiveram de
ser procuradas com pressa as fitas em que atuavam Jannins e Rürmann, com Henry
Porten, Lil Dagover, Olga Tchecova, Zarah Leander, ou Jenny Jugo. As película em
que apareciam pernas nuas eram acolhidas com aplausos. Freqüentes vezes, víamos
fitas estrangeiras e aquelas que não eram projetadas para o público alemão.
Pelo contrário, faltavam quase inteiramente película sobre esportes, de
paisagens montanheses, nunca sendo exibidas as que mostravam animais e vistas
do campo, como também as que davam informações sobre países estrangeiros. Hitler
não se interessava em fitas cômicas, das quais eu gostava, em que eram atores
Carlitos ou Buster Keaton.
Durante uma daquelas reuniões,
no inverno de 1933, estando eu sentado ao lado de Goering, este perguntou:
- Meu Führer, Speer está
construindo a sua residência? É seu arquiteto?
Eu não o era mas Hitler
respondeu que sim.
- Permita-me então que ele faça
uma reforma tem minha casa.
Hitler deu o consentimento.
Depois da refeição, sem indagar das minhas preferências e ideias, Goering convidou-me
a entrar em seu automóvel aberto, para levar-me à sua residência como se eu
fosse um troféu valioso. Escolheu para sua casa a antiga residência oficial do
ministro prussiano do Comércio, rodeada de um jardim que se estendia por trás
da Leipziger Platz. Era um palácio que o Estado construíra sem reparar em
despesas.
Havia poucos meses que essa
residência fora reformada, dispendiosa mente, conforme as indicações de Goering,
que para isso se utilizou do dinheiro do Estado da Prússia. Hitler inspecionou
a obra concluída e ele mostrou-se insatisfeito:
- Muito escura! Como se pode
viver de uma escuridão dessas? Compare isso com o trabalho do meu professor:
muito claro, cheio de luzes e simples.
Realmente, encontrei um
conjunto de saletas românticas, com nichos, escuras janelas envidraçadas,
grossos tapetes, tudo mobiliado segundo o estilo Renascimento. O conjunto
causava impressão desfavorável. Havia também uma espécie de capela, dedicada à
cruz suástica. Mas este símbolo estava entre as paredes, o forro e o piso de
saletas contíguas.
Um indício daquele sistema,
talvez ocorrente em todas as formas de uma sociedade submetida a princípios
autoritários, foi a maneira como se transformou, imediatamente, Goering, ao
ouvir a crítica de Hitler, pois sem perda de tempo abandonou a instalação, há pouco
terminada, conforme suas instruções, apesar de com certeza sentir-se mais à
vontade nela, pois correspondia à sua maneira de ser.
- Dê uma olhada nisto. Eu já
nem quero ver. Proceda como quiser. Eu lhe entrego a obra. A única coisa que eu
quero é que fique como lá do Führer.
Foi uma incumbência
magnífica. Como sempre, em se tratando de Goering, o dinheiro não tinha nenhuma
importância. Derrubaram-se paredes para se transformarem em quatro salas os
numerosos quartos do rés-do-chão. A maior dessas salas, a do seu gabinete, media
140 m2, e portanto suas dimensões aproximavam-se das da sala de Hitler.
Acrescentou-se ao antigo edifício um anexo feito de ornamentos de bronze
embutidos em cristal. O bronze estava escasso, era considerado metal precioso,
havendo castigo para quem usasse dele abusivamente. Mas isso não afetou
Goering, de modo algum. Quando inspecionava as obras, entusiasmava-se, com o
rosto sorridente como o de um menino em festa de aniversário, expressando sua
alegria com o esfregar de mãos e rindo.
Os móveis de Goering estavam
de acordo com o seu corpo. Uma antiga mesa para secretaria, estilo
Renascimento, tinha dimensões extraordinárias. Também havia uma poltrona cujo
encosto se elevava muito acima da cabeça. Talvez tivesse sido o trono de algum
rei. Na mesa do gabinete, mandou colocar dois candelabros de prata com abajures
de folhas de pergaminho, além de uma fotografia muito grande de Hitler. Não
achava muito vistoso o original com o que o presenteara o Führer. No vestíbulo,
foi retirado um quadro de grandes dimensões, a fim de haver um lugar para uma
câmara cinematográfica, por trás da parede. Eu já tinha visto esse quadro. De
fato, Goering, segundo fui informado, ordenara ao "seu" diretor
prussiano do Museu do Imperador Frederico que levasse para sua casa - a de
Goering - o célebre quadro de Rubens, "Diana
caçando o cervo", até então uma das mais importantes obras-primas
naquele museu.
Durante o tempo de reforma de
sua residência, Goering morou no palácio do presidente do Reichtag, em frente, ao
edifício dos começos do século XX, com fortes reminiscências de um rococó de
novo-rico. Aí nós conversávamos sobre a forma na sede definitiva.
Freqüentemente, estava presente um dos diretores da Vereinigten Werkstäten, o
Sr. Paepke, cavalheiro de cabelos encanecidos, já bastante idoso, com boas
intenções de agradar Goering, mas intimidado pela maneira seca e meio dura como
este tratava seus subordinados. Um dia, estávamos sentados com Goering em uma peça
cujas paredes, em estilo neo-rococó guilerminesco, que estavam enfeitadas de
cima a baixo com rosas em relevo cheio. Resumo e conceito do autêntico idiota.
Goering também sabia disso, quando começou a perguntar:
- Que lhe parece esta
decoração, senhor diretor? Não está mal, não lhe parece?
Em vez de responder: "Isto
é horroroso", o velho cavalheiro deu uma resposta evasiva, não querendo
indispor-se com o seu poderoso patrão e cliente. Goering tolerou essa evasiva,
piscando-me um olho.
- Mas, senhor diretor, não
acha isso bonito? Pretendo que o senhor faça uma decoração idêntica em todas as
peças. Já falamos nisso, não é? Sr. Speer?
- Sim, naturalmente, já estão
em andamento os desenhos.
- Bem, já vê, senhor diretor,
este é o nosso novo estilo. Tenho
certeza de que lhe agradará.
O diretor não sabia o que
fazer. A testa estava suarenta e a barba
pontuda tremia, sob o efeito da excitação. Goering estava resolvido a obrigar o
ancião a manifestar-se, claramente, em um ou outro sentido, e continuou:
- Vejamos. Repare com toda a
atenção nesta parede. Veja como as rosas brotam, maravilhosamente, como se
fosse na primavera. O senhor não sente entusiasmo por isso?
- Claro que sim, claro que
sim - opinou timidamente o desesperado personagem.
- Mas o senhor devia
sentir-se entusiasmado por uma obra de arte com esta, sendo, como é, um notável
conhecedor de arte. Diga-me: não acha precioso?
Goering continua a
brincadeira até que o diretor cedeu e simulou o entusiasmo que lhe era exigido.
- Assim são todos - exclamou
Goering por trás do professor, tomado de desprezo.
De fato, assim eram todos,
entre os quais convinha incluir o próprio Goering, que, durante as refeições do
domicílio de Hitler, não se cansava de proclamar que sua residência seria agora
tão clara e grandiosa com a do seu chefe: "É exatamente como a sua, meu
Führer".
Se Hitler tivesse ordenado pelegos
com rosas nas paredes de seus quartos, Goering também teria exigido rosas
iguais.
No inverno de 1933, poucos
meses depois daquela decisiva refeição em casa de Hitler, foi admitido no
círculo dos seus mais íntimos colaboradores. Eu ainda estava muito distante da
minha posterior orientação classicista. Por acaso se tinham conservado os
projetos de um concurso para a construção de uma escola de comandos do NSDAP em
Munique-Grünewald, do qual participaram todos os arquitetos alemães. Hitler
examinou como Troost e comigo os desenhos deste concurso, antes da respectiva
classificação. Segundo norma habitual, os desenhos tinham sido entregues sob
anonimato. O meu não foi aceito. Somente depois de concedido o prêmio procedeu-se
à verificação dos pseudônimos. Troost referia-se ao meu desenho em uma
conversa, que Hitler, para meu assombro, foi capaz de recordar os meus esboços,
apesar de termos visto apenas por uns segundos entre muitos outros. Ouviu em
silêncio ou elogio formulado por Troost. Talvez tenha pensado então que eu
ainda estava longe de ser um bom arquiteto de acordo com suas idéias.
Hitler ia a Munique com
intervalos de duas ou três semanas. Eram cada vez mais freqüentes minhas idas
com ele em tais viagens. Quando descer do trem, dirigia-se logo no escritório
do professor Troost. Ainda no trem, Hitler costumava falar com vivacidade a
respeito dos esboços que o professor teria feito:
- Talvez tenha feito alguma
alteração no projeto da Academia de Belas-Artes. Tinha de melhorar um pouco...
já estarão desenhados os detalhes do refeitório? É bem possível que possamos
ver os esboços das esculturas de Wackerle.
O escritório estava em um
pátio descuidado, por trás da Theresienstrasse, não longe da Escola Técnica
Superior. Por uma escada descoberta, que não era pintada havia anos, tinha-se
de subir dois lances até chegar ao escritório de Troost. Este, consciente de
sua posição, jamais saía a receber Hitler na escada, nem o acompanhava quando
saía. Hitler cumprimentava-o na ante-sala.
- Não posso esperar, senhor
professor. Mostre-nos as novidades.
Hitler e eu passávamos logo à sala do trabalho. Aí,
Troost, com um sentimento de segurança, reservado como sempre, mostrava seus
projetos e esboços. No entanto, Troost não obtinha mais do que eu conseguiria
mais tarde. Hitler não deixava perceber seu entusiasmo. Em seguida, o "senhor
professor" exibia amostras de cores de telas e tons das paredes, que
seriam empregados na decoração das dependências da Casa de Comandos em Munique.
Tudo combinado de maneira discreta e elegante. Na realidade, muito discreta
para o gosto de Hitler, orientado no sentido da produção de efeitos. Mas
agradaram-lhe. Depois de 2 horas ou mais, Hitler despedia-se com palavras bem
breves, mas cordialmente, dirigindo-se à sua residência. Quanto a mim, dizia
rapidamente:
- À osterìa.
Na hora normal, mais ou menos
às duas e meia, eu me encaminhava à Osterìa Baviera, o pequeno restaurante
freqüentado por artistas, que de repente ficou afamado porque Hitler fazia lá
suas refeições. Ele sentia-se bem na osterìa;
como "artista que não se realizara" agradava-lhe aquele ambiente, ao
qual aspirada pertencer e que agora tinha perdido, deixando para trás,
definitivamente. Não era raro que o limitado número de convidados o esperasse,
horas e horas. Eram um ajudante do chefe regional da Baviera, Wagner, no caso
de já ter curtido a sua embriaguez; naturalmente, seu acompanhante; e Hoffmann,
fotógrafo oficial que, naquele tempo, de vez em quando se apresentava
ligeiramente alcoolizado; com muita frequência, a simpática Lady Mitford; e,
algumas vezes, embora raras, um pintor ou um escultor. Depois, também o Dr.
Dietrich, o chefe de imprensa do Reich, e, sempre, Martin Bormann, o secretário
aparentemente insignificante de Rudolf Hess. Na rua, algumas centenas de
homens. Bastava-lhes nossa presença para saberem que "ele" vinha.
Um grande júbilo na rua.
Hitler aproximava-se do local onde estava a nossa mesa, protegida em um dos
lados por um tabique de altura mediana. Quando o tempo estava bom, nós nos sentávamos
em um pequeno pátio, que pretendia ser um lugar para ceias. O dono do
restaurante e as duas empregadas eram cumprimentados com jovialidade.
- Que temos hoje de bom?
Raviólis? É pena que sejam tão saborosas. São muito tentadores.
Hitler estalava os dedos.
- Tudo em sua casa é
magnífico, Sr. Deutelmoser. Mas veja a minha linha. Esquece que o Führer não
pode comer tudo o que ele apetece.
Depois que examinava o longo
cardápio acabava escolhendo os raviólis. Cada um pedia o que lhe agradava: filés, goulash
e também o bom vinho da Hungria. Apesar dos ocasionais gracejos de Hitler a
propósito dos "devoradores de faisandés",
"bebedores de vinho", lá todos comiam e bebiam sem embaraço. Estavam
entre amigos. Tinham chegado a um acordo tácito: não se falava de política. A
única exceção era a Lady Mitford, que, mesmo nos anos de tensão que se
seguiram, lutou tenazmente em defesa da sua pátria, a Inglaterra, suplicando
muitas vezes a Hitler que fizesse um acordo com a Grã-Bretanha. Apesar da
reserva de Hitler, reserva que
significava recusa, essa mulher não demonstrou a menor fadiga em sua atitude,
no decurso de anos. Mais tarde, em setembro de 1939, tentou suicidar-se com uma
pistola muito pequena, no dia da declaração de guerra à Inglaterra. Isso
ocorreu no Jardim Inglês de Munique. Hitler entregou-a aos melhores médicos de
Munique e ordenou que ela fosse sem demora enviada ao seu país natal, em um
carro oficial, transitando pela Suíça.
Durante daquelas refeições, o
assunto principal era a visita feita ao professor, pela manhã. Hitler exagerava
os seus elogios. Todos os detalhes ficavam-lhe na memória sem esforço. Suas
relações com Troost pareciam-se com as de um discípulo em relação ao professor.
Lembravam-me minha admiração por Tessenov, careciam de crítica. Esse traço do
caráter de Hitler agradava-me muito. Para mim, era motivo de assombro que
aquele homem, adorado como um deus pelas pessoas que o rodeavam, fosse capaz de
sentir por outra pessoa uma espécie de veneração. Hitler, que, pessoalmente, se
considerava arquiteto, respeitava, nesse campo, a superioridade do especialista
na matéria, coisa que jamais teria feito em se tratando de política.
Narrava com frequência como
chegaram a travar conhecimento com Croce, por intermédio dos Bruckmann, uma culta
família de editores de Munique. Segundo suas próprias palavras, quando viu os
trabalhos de Troost, pareceu-lhe que "caiu um véu nos seus olhos".
- Passei a não suportar o que
tinha desenhado, até então. Que sorte conhecer esse homem!
A arquitetura de Troost era
realmente sóbria e, assim, sua influência sobre Hitler manifestou-se no caráter
de um episódio. Hitler elogiou até o fim os arquitetos e obras que tinham servido de modelo em que
seus antigos esboços: o grande Ópera de Paris (1816-1874) de Charles Garnier.
- Sua escadaria é a mais
famosa do mundo. Por ela desceram as senhoras com suas esquisitas cabeleiras.
Homens uniformizados, que ambos os lados... Sr. Speer, nós devemos construir um
edifício também assim.
Do mesmo modo, sentia-se
entusiasmado pela Ópera de Viena.
- É o teatro de ópera mais
maravilhoso do mundo. A acústica é perfeita. Quando eu, moço, me sentava ali na
última fila de lugares...
Relativamente ao segundo
arquiteto daquele teatro, Van der Nüll, Hitler contava o seguinte:
- Ele suponha que o seu Ópera
tinha ficado defeituoso. Veja a que extremos chegaria seu desespero, ao dar um
tiro na cabeça no dia da inauguração. Mas essa inauguração foi o maior dos seus
êxitos. Toda a gente elogiou os arquitetos.
Em tais ocasiões, não era
raro que concluísse por se referir aos momentos difíceis por que passara, como
sempre fora salvo por uma mudança favorável nos acontecimentos. Terminava
dizendo: "Não se deve ceder nunca".
Suas preferências
inclinavam-se de modo especial para os numerosos e edifícios teatrais,
levantados por Hermann Helmer (1849-1919) e Ferlinand Fellner (1847-1916), os
quais se identificaram teatros não somente na Áustria-Hungria como também na
Alemanha, nos fins do século XIX, orientados pelo mesmo estilo: um barroco
tardio. Hitler sabia em que cidades havia edifícios construídos por esses
homens e mais tarde mandou reformar o
descuidado teatro existente em Augsburgo. Mas também estimava os severos arquitetos
do século XIX, Gottfried Semper (1803-1879), construtor da ópera e da
pinacoteca de Dresden, do Palácio Imperial e dos museus da corte de Viena;
também Theophil Hansen (1803-1883), que edificara em Atenas e em Viena alguns
importantes prédios do estilo classicista. Logo depois da entrada das tropas
alemãs em Bruxelas (1940), tive de ir àquela capital para examinar o gigantesco
Palácio da Justiça, de Poelaert (1817-1879), pelo qual Hitler sentia grande
entusiasmo. Mas, tal como o Ópera de Paris, ele só os conhecia pelas plantas.
Quando eu regressei, pediu-me todos os pormenores a respeito daquele palácio.
Esse era um mundo de
arquitetura de Hitler. No final, ia ter ao falado neobarroco, que também
Guilherme II recomendara ao arquiteto do seu palácio, Ihne. Também lhe ocorria
o mesmo no tocante à pintura e escultura, nas quais se refletia o mundo da sua
juventude, o mundo compreendido entre os anos de 1880 e 1910, que emprestou características especiais tanto
ao seu gosto artístico como ao seu pensamento político e ideológico.
As tendências contraditórias
caracterizavam a maneira de ser de Hitler. Por exemplo, era capaz de falar
entusiasmado das maravilhas arquitetônicas de Viena, que talvez lhe estivessem
gravadas na memória desde a juventude, e explicava:
- Foi com Troost que aprendi,
pela primeira vez, o que era realmente arquitetura. Quando o partido dispôs de
maiores recursos, encarreguei-o de reformar de mobiliar a Casa Cinzenta. Já vi
o resultado. Mas quantas dificuldades encontrei por causa disso...
Paul Ludwig Troost nascera na
Vestfália, sendo de estatura elevada,
delgado, de cabeça totalmente raspada. Reservado no falar, gestos sóbrios,
pertencia a um grupo de arquitetos tais como: Peter Behrens, Joseph M. Olbrich,
Bruno Paul e Walter Gropius. Desde antes de 1914, estes eram os representantes
de uma nação orientada no sentido do emprego de métodos arquitetônicos parcos,
quase desprovidos de adornos, e de um tradicionalismo espartano, unidos a
elementos modernos. Sem dúvida Troost obteve êxitos ocasionais em alguns
concursos: mas jamais pôde exceder os grupos de vanguarda antes de 1933.
Não havia de modo nenhum
"estilo do Führer", por mais que a imprensa do partido falasse disso.
O que foi declarado como arquitetura oficial do Reich era unicamente o
neoclassicismo de Troost, depois transformado, exagerado e mesmo desfigurado
até o ridículo. Hitler apreciava no estilo classicista seu caráter
supratemporal. Ele acreditava ter encontrado na época dórica alguns pontos de
conexão com o seu mundo germânico. Entretanto, estaria equivocado quem
buscasse, no caso de Hitler, um estilo arquitetônico com base ideológica. Isso
não se considerava com seu pensamento pragmático.
Não há dúvida que Hitler
tinha um objetivo determinado ao levar-me consigo, regularmente, a Munique para
examinar cobras. Era evidente que pretendia fazer de mim um discípulo de
Troost. Eu, sempre disposto a aumentar meus conhecimentos, aprendi realmente
muito com esse arquiteto. A rica arquitetura de meu segundo mestre, embora
reservada em sua limitação a elementos construtivos simples, influiu em mim de
maneira decisiva.
Ele terminara a extensa
conversa de sobremesa no restaurante Baviera:
- O professor disse-me hoje
que a escadaria da casa será um trabalho de artesanato. Mal posso acreditar.
Brückner, mande vir o carro. Vamos sair já. O senhor vem comigo, não é?
Dirigiu-se rapidamente à escadaria da construção, olhou-a debaixo para
cima, de academia. Subiu outra vez e acabou mostrando-se a encantado.
Finalmente, a obra fora inspecionada pelo
Führer, sob todos os ângulos. Hitler tinha um conhecimento exato de
todos os detalhes, demonstrando-o uma vez mais, de modo que assombrou a todos
que trabalhavam na obra. Satisfeito com o andamento dos trabalhos, satisfeito
consigo mesmo por ser a causa e o motor da edificação, dirigiu-se ao próximo
objetivo: a quinta da propriedade de um fotógrafo em Munique-Bogenhausen.
Quando fazia bom tempo, o
café era servido no pequeno jardim da quinta, de uns 200 m quadrados e rodeado
pelos jardins de outras quintas. Quando havia sol, podia acontecer que o Führer
e chanceler do Reich ficasse à americana, em mangas de camisa, estendido em uma
rede. Em casa de Hoffman ele sentia-se como se estivesse na sua própria
residência. Certa vez pediu um volume de Ludwig Thoma, escolheu um trecho que
esteve lendo em voz alta. Hitler sentia especial predileção pelos quadros que o
fotógrafo levava para sua escolha. A princípio, admirei-me por ver que espécie
de quadros Hoffman apresentava a Hitler. Depois, acostumei-me, embora sem poder
dissuadir-me na minha antiga paixão pelos quadros românticos, de Rotmann, Fries
ou Kobell, por exemplo.
Um dos pintores preferidos de
Hitler e de Hoffmann era Eduard Grüntzner. Os seus quadros com frades e bodegueiros
bebendo vinho concordavam melhor com a forma de vida do fotógrafo do que com a
de Hitler, que era abstêmio. Mas o Führer examinava essas obras sob um ponto de
vista artístico.
- Quê? Custa só cinco mil
marcos?
O quadro não teria valido
mais do que dois mil marcos, do ponto de vista comercial.
- Sabe, Hoffmann? Isso é uma
verdadeira jóia. Veja esses detalhes! Não dão a Grüntzner o valor que ele
merece.
A obra seguinte desse pintor
custou mais.
- Pois, precisamente, não foi descoberto. Depois da
morte de Rembrandt, passaram-se anos até que fossem apreciados pelo seu real
valor os quadros daquele mestre. Na sua época, as obras daquele pintor eram
quase dadas. Acredite-me, este Grützner
ficará para o futuro, como Rembrandt, que não poderia ter pintado isto melhor.
Hitler considerava os fins do
século XIX uma das maiores épocas da história da humanidade, em todas as
esferas da arte. Malart era um dos pintores daquele tempo mais estimados por
ele, que também apreciava muito Spitzweg. Apesar de apreciar o grandioso e algumas
vezes impressionista Malart, ele gostava de Spitzweg, que, com seu humor amável
e sincero, plasmava com ironia o caráter da provinciana Munique daqueles anos.
Para desagradável surpresa do
fotógrafo, descobriu-se que um falsário se tinha aproveitado dessas
preferências por Spitzweg . No princípio, Hitler aborreceu-se por não poder
distinguir quais eram as autênticas entre as pinturas que ele vira de Spitzweg
.
- Sabe? As pinturas de
Spitzweg, na casa de Hoffman, são em parte falsificadas. E isso se pode
verificar, examinando-as. Mas deixemo-lo com sua alegria.
Quando estava em Munique, Hitler
se adaptava à maneira de conversar dos bárbaros. Visitava com freqüência o
Carltons Teestuben, um estabelecimento pseudoluxuoso, com móveis de estilo
inautêntico e aranhas de cristal também falsas. Gostava de ir lá, pois,
restando naquela casa, os habitantes de Munique não o importunavam com aplausos
e pedidos de autógrafos, como acontecia em outros lugares. Muitas vezes, já à
noite, eu recebia um telefonema da casa de Hitler: "O Führer vai ao Café
Heck e pede-lhe que vá também". Eu tinha de saltar da cama, sabendo de antemão que não
poderia regressar antes das 2 ou 3 horas da madrugada.
Algumas vezes, Hitler
desculpava-se:
- Nos meus tempos de luta,
acostumei-me a estas noitadas. Tinha de estar em companhia dos velhos
camaradas, depois das reuniões. Ademais, em seguida aos discursos, eu me achava
tão excitado que só podia dormir quando a manhã já estava alta.
Ao contrário do Carltons
Teestuben, o Café Heck, com suas cadeiras simples de madeira, suas mesas de
ferro, no tocante à instalação era a antítese do outro. Antigo café do partido,
tinha sido o local onde Hitler, antigamente, se reunia com os companheiros de
luta. No entanto, depois de 1933, não se reuniu mais com eles. Eu supunha que
ele tivesse em Munique um largo círculo de relações, mas não havia disso. Ao
contrário, Hitler ficava mal-humorado quando um de seus antigos correligionários
desejava falar-lhe. Quase sempre tinha jeito de afastar essas visitas ou de
demorar a atendê-las. Os antigos camaradas do partido nem sempre guardavam a
distância que Hitler agora julgava necessária, apesar da sua afabilidade
exterior. Freqüentemente, usavam de familiaridade inadequada até certo ponto. O
direito que eles se atribuíam para essa intimidade já não se ajustava ao papel
histórico que o Führer se tinha atribuído.
Eram muito raras as visitas
de Hitler a esses antigos companheiros, os quais se haviam apropriado de
quintas senhoriais, desfrutando a maioria deles de cargos importantes. A única
reunião era a comemorativa do aniversário do Putsch de nove de novembro
de 1923, que se realizava no Bürgerbräukeller. Note-se que Hitler não sentia a
menor alegria por esse reencontro, mas freqüentes vezes manifestava seu
desagrado por essa espécie de obrigação.
Depois de 1933,
constituíram-se rapidamente diversos círculos, afastados uns dos outros, e que
se espionavam reciprocamente, rivalizando uns com os outros e desprezando-se
mutuamente. Isso se relacionava também com o fato de se terem formado círculos
em torno de cada dignatário. Assim, Himmler tratava quase exclusivamente com os
homens da SS, que lhe dedicavam uma veneração incondicional. Goering tinha em
redor de si um grupo de admiradores fanáticos, constituídos em parte pelos seus
mais imediatos colaboradores e ajudantes. Goebells sentia-se à vontade no meio
de um grupo de admiradores procedentes dos setores de literatura e do cinema.
Hess ocupava-se dos seus problemas de curas com a homeopatia, gostava de música
de câmara e tinha conhecimentos excêntricos, embora também interessantes.
Goebbels, considerando-se intelectual,
olhava por cima do ombro os incultos pequenos burgueses dos grupos de direção
de Munique. Estes, por sua vez, zombavam das ambições literárias do presumido
doutor. Por sua parte, Goering não julgava à sua altura nem os pequenos
burgueses de Munique nem Goebbels, evitando qualquer relação social com uns e
outro. Enquanto isso, Himmler, preocupado com os homens das SS, que se
consideravam pessoas de elite, e que se envaideciam com as preferências
demonstradas pelos filhos de príncipes e condes, considerava-se muito acima dos
demais. Também Hitler possuía um grupo seu, íntimo, que ia com ele a todos os
lugares, composto sempre das mesmas pessoas: motoristas, fotógrafos, piloto e
secretários.
É bem verdade que Hitler
unia, politicamente, aqueles círculos tão divergentes entre si. Mas nas
refeições ou nas sessões de cinema, depois de um ano de conquista do poder, não
se via Himmler, Goering ou Hess com a frequência que seria admissível em uma
sociedade vinculada ao novo regime. E, nos encontros, o interesse deles achava
ser tão concentrado em Hitler e seu favor que os contatos marginais com os
demais grupos tinham efeitos nulos. Também Hitler não estimulava uma união
social do grupo constituinte da chefatura. Quando mais adiante se tornou mais
crítico o desenvolvimento dos acontecimentos, as iniciativas recíprocas de
aproximação eram observadas com desconfiança. Somente quando tudo já estava terminado (já no cativeiro), as
hierarquias ainda restantes daquele mundo em miniatura, fechado nele mesmo,
reuniram-se pela primeira vez em um hotel, no Luxemburgo, embora à força, é
verdade.
Quando estava em Munique, Hitler
pouco se ocupava de assuntos governamentais ou do partido, menos do que quando
ficava em Berlim ou Obersaltzberg. Geralmente, só dispunha de uma ou duas horas
por dia para as conferências. A maior parte do tempo empregava vagabundeando, visitando obras de
construção, estúdios, cafés, restaurantes, falando sozinho, muitas vezes, mas
sempre rodeado pelo mesmo pessoal, que conhecia por demais os assunto sempre
repetidos e que, fazendo grandes esforços, tratava de esconder o aborrecimento.
Depois de dois ou três dias
em Munique, de vez em quando Hitler dava ordem para o preparo de uma viagem à
"montanha". Íamos por estradas poeirentas em carros abertos. Ainda
não havia a rodovia de Salzburgo, que estava sendo construída com afinco.
Quando em sua pousada aldeã, em Lambach am Chiensee, comíamos uma merenda de
bolo saborosos, que Hitler deixava de provar fazendo esforço sobre si mesmo.
Depois, os ocupantes do segundo e terceiro carros iam comer poeira, outra vez,
pois a coluna de automóveis rodava muito fechada. O caminho a Berchtesgaden era
uma que estrada tem declive, que nos levava à pequena e agradável casa de
madeira que Hitler possuía em Obersaltzberg, uma casa de telhado muito saliente
e muito modesta quanto a acomodações: uma sala de refeições, uma sala de estar
e três quartos de dormir. Os móveis eram da época dos pequenos armários
ornamentais, dando ao ambiente o caráter de uma residência de pequenos
burgueses que viviam comodamente. Esta impressão era acentuada por uma gaiola
dourada com um canário, um cacto e um eucalipto. Viam-se suásticas em
figurinhas, em almofadas bordadas por partidárias de Hitler, ora com um sol
nascente ou com a frase "fidelidade eterna". Confuso, Hitler disse-me:
- Sei que estas coisas não
são bonitas. Muito do que está aqui recebi de presente. Mas não quero de modo
algum separar-me disto.
Depois de algumas horas,
chegava um pequeno Mercedes fechado, com as secretárias, a senhorita Wolf e a
senhorita Schroeder, quase sempre acompanhadas por uma modesta rapariga de
Munique, mais agradável e de bom aspecto do que bonita. Nada indicava ser esta
a amante de um homem todo-poderoso: Eva Braun.
Aquele carro fechado não
podia jamais ir na coluna dos automóveis oficiais, pois não podia ser
identificado como tendo relação com Hitler. As secretárias serviam para
disfarçar a chegada da amante. Surpreendeu-me o fato de que Hitler e ela
evitassem tudo o que pudessem indicar uma amizade íntima entre ambos, até
quando à alta noite tivessem de subir nos quartos de dormir. Nunca pude
compreender a razão desse disfarce, mesmo no círculo íntimo, onde não poderia
deixar de ser notada a ligação entre ambos.
Eva Braun mantinha-se
afastada de todas as pessoas que rodeavam Hitler. Sua conduta para comigo mudou
no decurso dos anos. Quando nos conhecemos melhor, verifiquei que as suas maneiras
reservadas, para muitas pessoas sinal de altivez, decorriam unicamente de sua
timidez. Sabia perfeitamente do caráter inseguro da sua posição na corte de Hitler.
Nos primeiros anos de nosso
conhecimento, Hitler ficava na pequena casa só com a Eva Braun, um
ajudante-de-ordens e com um criado. Os cinco ou seis convidados, entre eles
Martin Bormann, o chefe de imprensa do Reich - Dietrich - e as duas
secretárias, acomodavam-se em uma pensão
existente nas proximidades.
O desejo de Hitler de
escolher Obersaltzberg para lugar de sua residência parecia testemunhar seu
amor à natureza. No entanto, quando fiz esta observação, vi que me equivocara.
Talvez admirasse o belo panorama. Mas, em geral, sentia-se mais atraído pela
grandiosidade dos fundos abismos do que pela agradável harmonia de uma
paisagem. É possível que o sentisse mais do que exprimiam as palavras. Não
gostava muito de flores, tolerando-as como elemento decorativo. Em 1943, uma
delegação de uma organização feminina berlinense quis receber Hitler, na
Estação de Anhalt, propondo-se entregar-lhe um ramalhete de flores, no momento
de sua chegada. A chefe dessa delegação falou por telefone a Hanke, secretário
do Ministério da Propaganda, para saber quais as flores preferidas de Hitler.
Hanke dirigiu-se a mim, dizendo:
- Telefonei a todo mundo e
perguntei aos ajudantes-de-ordens, mas em vão. Ele não tem nenhuma flor
favorita.
Que depois de refletir um
pouco:
- Qual é a sua opinião,
senhor Speer? Talvez possamos responder que é Edelweiss... Suponho que esta flor seria a melhor. Não é uma flor
muito comum e procede das montanhas da Baviera. Vamos dizer que é Edelweiss.
Desde então essa flor foi
que, oficialmente, a "Flor do Führer". Isso demonstra com que a
independência. Se dia, em certas ocasiões, a propaganda do partido, ao
configurar a imagem de Hitler.
Freqüentemente Hitler falava
de grandes excursões que, segundo dizia, realizara antigamente. É verdade que
tais excursões eram insignificantes, do ponto de vista de um alpinista. Ele não
gostava de alpinismo vem de esquiar nos Alpes.
- Como pode haver alguém que
sinta prazer em prolongar de maneira artificial o espantoso inverno, mediante
uma permanência nas alturas?
Sua aversão à neve
manifestou-se uma ou outra vez, antes da catastrófica campanha de inverno de 1941-1942.
- De boa vontade eu proibiria
essa classe de esporte. Ela ocasiona muitas desgraças. Mas as tropas de
montanha formam-se com esses loucos.
Nos anos de 1934-1935, Hitler
deu longos passeios pelos caminhos da montanha, acompanhado dos seus convidados
e de 2 ou 3 funcionários de polícia, pertencentes à sua seção de escolta do
estandarte da guarda pessoal. Eva Braun podia acompanhá-lo nesses passeios, mas no grupo em que estavam
as duas secretárias, no fim da coluna.
Ser chamado por Hitler para a
frente da coluna era considerado um privilégio, embora a conversa com que ele
fosse vagarosamente. Transcorria meia hora, Hitler mudava de companheiro:
- Diga ao chefe de imprensa
que venha.
Algumas vezes nos dirigíamos
a Hochlenzer, uma pequena pousada montanhosa, outras vezes a Scharitzkehl, onde
se bebia cerveja ou um copo de leite, ao ar livre, em mesas singelas de
madeira. Era rara uma excursão mais longa. Isso sucedeu uma vez com o Capitão-General
von Blomberg, comandante-chefe da Wehrmacht. Por tratarem de graves problemas
militares, todos os da comitiva tiveram de manter-se distanciados. Outra vez,
fomos com automóvel até Koenigsee e dali, utilizando-nos de uma lancha motor,
fomos à península de Bartholomä. Também fizemos uma excursão de 3 horas até
Koenigsee, passando por Scharitzkehl. No último trecho do caminho, tivemos de
passar por muitos turistas. No princípio, Hitler não foi reconhecido, mas
depois, quando chegamos a uma hospedaria, chamada Schiffmeister, formou-se um
grande grupo de entusiastas, que tinham reconhecido Hitler e que, animados, nos
acompanharam. Precedidos por Hitler, que andava apressado, conseguimos com
dificuldade alcançar a porta da hospedaria, antes de sermos cercados pela
multidão, cujo número aumentava rapidamente. Enquanto nós sentávamos, diante do
café e dos bolos, enchia-se a grande praça fronteira ao edifício. Hitler não
subiu ao carro aberto enquanto não chegaram reforços para a guarda. De pé, ao
lado do motorista no assento dianteiro, com a mão esquerda no pára-brisa, os
turistas puderam vê-lo, até mesmo os que estavam mais afastados. Em tais
ocasiões, o entusiasmo era extremo. Afinal, tinha sido premiada uma espera de
longas horas. O automóvel movia-se precedido por dois homens da escolta e flanqueado
por outros seis, dois de cada lado. O veículo abria caminho lentamente, pelo
meio da multidão apinhada. Como na maioria das ocasiões, eu ia sentado em
imediatamente atrás de Hitler, e eu não esquecerei jamais daquela explosão de
júbilo, aquela embriaguez de satisfação expressa em tantos rostos. Aquela cena
se repetia, em toda parte, nos primeiros anos de seu governo, onde quer que
aparecesse Hitler ou se detivesse o seu carro, ainda que somente por alguns
instantes.
Talvez seja compreensível que
também eu me sentisse arrastado por aqueles transbordamentos de veneração. Mas,
para mim, muito mais impressionante era falar, minutos ou horas depois, com aquele
ídolo de um povo, sobre planos de obras em construção, sentar-me ao seu lado no
teatro, ou comer com ele raviólis na osterìa.
Esse contraste era o que exercia um fascínio sobre mim.
Se, há alguns meses antes, eu
estivera entusiasmado com a nova possibilidade de realizar as construções, agora
estava inteiramente submetido à influência do feitiço de Hitler, a quem eu me
entregara, inconscientemente, sem capacidade nenhuma crítica. Eu estava
disposto a acompanhá-lo em toda parte. Procedendo assim, Hitler pretendia,
evidentemente, proporcionar-me uma gloriosa carreira de arquiteto. Anos depois,
na prisão de Spandau, li a opinião de Cassirer a respeito dos homens que pelo
seu próprio impulso desdenham o mais alto privilégio do ser humano: o de serem
pessoas donas delas mesmas.
Eu era então um desses
homens.
Duas mortes, em 1934, tiveram
efeitos de ordem particular e pública. Troost, o arquiteto de Hitler, faleceu
no dia 21 de janeiro, depois de semanas de muitos padecimentos. E, no dia 2 de
agosto, morreu o presidente do Reich, Von Hindenburg, abrindo-se assim para Hitler
o caminho rumo a um poder sem nenhum limite.
No dia 15 de outubro de 1933,
Hitler, solenemente, colocou a primeira pedra da Academia de Arte Alemã, em
Munique. Para bater na pedra utilizou-se de um martelinho de prata, que Troost
desenhara especialmente para naquela cerimônia. O martelinho fragmentou-se em
vários pedaços. Quatro meses depois, falando conosco, Hitler disse:
- No mesmo instante em que o
martelo se partiu, pensei comigo: "Isto é mau agouro! Vai acontecer alguma
coisa!" Agora já se sabe por que o martelo se quebrou: o arquiteto tinha
de morrer.
Não foram poucas as ocasiões
em que testemunhei a superstição de Hitler.
A morte de Troost também
significou uma grande perda para mim.
Precisamente, estava se iniciando entre nós uma amizade, da qual eu esperava
muito, tanto sob o ponto de vista humano como artístico. Funk, subsecretário de
Goebells, naquela época, tinha uma opinião diversa da minha sobre o assunto. No
dia que faleceu Troost, eu o encontrei na ante-sala do seu ministério, com um
grande charuto no meio de sua cara redonda. Disse-me:
- Meus parabéns. Agora o
senhor é o primeiro.
Eu tinha então vinte e oito
anos de idade.