domingo, 6 de janeiro de 2013

Albert Speer - Por dentro do III Reich (02)


Capítulo 02 - Profissão e vocação


Em 1928, quase fui nomeado arquiteto de uma Corte real. Aman Ullah, soberano do Afeganistão, pretendia proceder a uma modernização seu país. Para isso, desejava o concurso de um jovem grupo técnico alemão. Joseph Brix, o professor encarregado da construção de rodovias e cidades, foi quem reuniu um grupo de técnicos. Minhas funções seriam a de autor de projetos de cidades, arquiteto, e também professor de arquitetura em uma escola de ensino médio que se pretendia estabelecer em Kabul. Minha esposa e eu estudamos juntos todos os livros que pudemos arranjar, a respeito daquele país distante isolado. Estivemos pensando em como se poderia elaborar um estilo nacional próprio, na base de construções modestas. Também pensamos em fazer excursões sobre esqui nas montanhas ainda não percorridas por criaturas humanas. Eram muito favoráveis as condições do contrato que lhe foi oferecido. Mas, quando este estava praticamente terminado e que o soberano encontrava-se na Alemanha, muito bem recebido por Hindenburg, os seus súditos o destronaram com um golpe de Estado.

Apesar disso, tive a compensação da possibilidade de continuar trabalhando com Tessenov. Antes eu duvidara. Mas agora fiquei satisfeito por não ter de tomar uma decisão, em conseqüência da deposição de Aman Ullah. Tinha de trabalhar no seminário somente três dias por semana. Além disso, na Escola Técnica Superior, havia cinco meses de férias. E eu cobrava trezentos marcos, equivalente mais ou menos a oitocentos marcos na época atual. Tessenov não dava preleções, mas na grande sala do seminário corrigia os trabalhos de seus alunos, cerca de cinqüenta. Em cada semana, ele comparecia por umas quatro a seis horas. Nas horas restantes, os estudantes dependiam de minhas explicações e correções.

Os primeiros meses foram muito cansativos. No princípio, os estudantes tinham uma atitude críticos em relação a mim, e tratavam de me surpreender em algum erro ou desconhecimento. Aos poucos, desapareceu minha timidez inicial. Sem dúvida não chegaram as encomendas de construção, que eu esperava poder fazer no tempo livre disponível, que era muito. Talvez eu parecesse muito moço. Além disso, a atividade no ramo de construções estava diminuída, em conseqüência da crise econômica. Uma exceção foi a casa de Heidelberg. Era uma obra despretensiosa, seguida de outra sem importância: duas garagem juntas, para pistas de jogos de Wansee e a edificação do centro berlinense do Serviço de Intercâmbio Acadêmico.

Em 1930, em nossos botes desmontáveis, saímos de Donaueschingen, descemos o Danúbio até Viena. Quando voltamos, eu soube que no dia 14 de setembro se tinham realizado eleições para o Reichtag. Só conservei lembrança disso porque o resultado das eleições excitou muito meu pai. O Partido Operário Nacional Socialista (NSDAP) alcançou sessenta cadeiras no Reichtag transformando-se logo no centro da discussão política. Esse êxito eleitoral imprevisto suscitou em meu pai os mais negros temores, mormente pelas tendências socialistas da NSDAP. Por outro lado, já estava intranquilo pela força alcançada pelos social-democratas e comunistas.



Enquanto isso, nossa Escola Técnica Superior já se transformara em um centro de operações nacional-socialista. Enquanto o pequeno grupo de estudantes comunistas de arquitetura se formava em torno do professor Poelzig, os nacional-socialistas agruparam-se em roda de Tessenov, embora esse homem continuasse inimigo declarado do movimento hitlerista. Apesar disso, havia analogias não expressas e não propositais entre a doutrina de Tessenov e a ideologia nacional-socialista. Seguramente, Tessenov não tinha consciência dessas analogias. Não havia dúvida de que o atemorizava o pensamento de uma semelhança entre suas idéias e a forma nacional-socialista de entender a vida.

Entre outras coisas, Tessenov ensinava: "O estilo nasce do povo. É lógico que se ame a pátria. Não pode haver uma verdadeira civilização internacional. Esta procede unicamente do regaço materno de uma nação".

Hitler era também contrário à internacionalização da arte. Seus partidários se viam no solo pátrio a raiz de uma renovação.

Tessenov condenava a grande cidade, opondo ao conceito respectivo idéias de camponês: "a grande cidade é uma coisa terrível, uma confusão de coisas antigas e modernas, a expressão de uma luta, luta brutal. Impõe-se a renúncia a tudo quanto for agradável... Onde o citadino entra em contato com o campo, a vida campestre acaba sendo destruída. É lastimável que não se possa mais pensar como aldeão".

Hitler também se manifestava contra o relaxamento de costumes nas grandes cidades, advertindo sobre os danos decorrentes da civilização, que ameaçavam a substância biológica do povo. Realçava a importância da manutenção de um núcleo campestre sadio para o sustentáculo do Estado.

Hitler teve a habilidade de expor e de utilizar para os seus próprios objetivos estas e outras idéias já existentes na consciência daquela época, embora em forma parcialmente difusa e inconsciente.

Durante meus trabalho de correção, os estudantes nacional-socialistas arrastavam-se freqüentes vezes a discussões de caráter político. Naturalmente, as  opiniões de Tessenov eram discutidas, apaixonadamente. As débeis objeções, que eu tratava de opor, extraídas do vocabulário de meu pai, eram varridas com muita habilidade dialética.

A mocidade estudantil procurava seus ideais de preferência no campo extremista. E o partido de Hitler dirigia-se, precisamente, ao idealismo dessa geração excitada. E Tessenov, por seu lado, também não animava essa disposição crescente em seus discípulos? Em resumo de suas opiniões, mais ou menos no ano de 1931:

"Talvez ainda  apareça alguém que pense de um modo simples. Atualmente, o pensamento está muito complicado. Um homem inculto, sem base, solucionaria essa situação de uma maneira muito mais fácil, justamente por ainda não estar corrompido. Esse homem disporia também de energia suficiente para concretizar suas concepções simples". Essa observação, pragmática em seu fundo, parecia-nos poder ser aplicável, precisamente, a Hitler.



Naquela época, Hitler falou no Hasenheide de Berlim aos estudantes da Universidade de Berlim e da Escola Técnica Superior. Meus alunos instaram para que eu comparecesse. Eu não estava ainda convencido, mas sim vacilante, a respeito de suas idéias. Em todo caso, acompanhei-os à reunião. Paredes sujas, portas estreitas e com interior nauseabundo causaram péssima impressão. Em outros tempos, os operários realizavam ali as suas cervejadas. O salão estava repleto. Parecia que quase todos os estudantes de Berlim queriam ouvir aquele  homem, de quem os partidários diziam coisas admiráveis, sendo tão difamado pelos adversários. Muitos professores estavam sentados em lugares especiais, no centro de uma tribuna sem nenhuma ornamentação. Era a presença desses professores que qualificava e prestigiava aquela reunião. Nosso grupo pudera alojar-se em bons lugares, na tribuna, não distante do estrado do orador.

Quando apareceu, Hitler foi acolhido por uma ruidosa aclamação dos estudantes seus partidários. Esse entusiasmo muito me impressionou, mas também me surpreendeu a maneira com que ele se apresentou. Eu já vira cartões e caricaturas que o mostravam vestido de uniforme, correame, franja no braço com o desenho de uma cruz gamada e uma pastinha de cabelos sobre a testa. Naquele dia, ele apresentou-se usando um terno azul, bem talhado, com uma atraente correção burguesa. Isso indicava ser Hitler um homem consciente ou inconscientemente, capaz de adaptar-se a qualquer ambiente.

Com um gesto de repúdio, pretendeu sustar as ovações, que duraram minutos. Depois começou a falar, em voz baixa, vacilante, com certa timidez, não pronunciando um discurso, mas fazendo uma exposição histórica. Ele me conquistou e, sobretudo por se mostrar inteiramente diverso daquilo que eu esperava pela propaganda feita pelos adversários: um demagogo frenético, um fanático vociferador, bracejante, vestido de uniforme. Mas os estrondosos aplausos não contribuíram para que ele deixasse o entono doutoral.

Aparentemente, expôs com franqueza e sem rodeios suas preocupações quanto ao futuro. Sua ironia atenuava-se por um humor de que ele tinha consciência. Atraiu-me essa afabilidade de alemão sulista. É impossível admitir que um frio prussiano me tivesse cativado com suas palavras. A timidez inicial de Hitler não tardou a desaparecer. Às vezes, elevava o tom de voz e falava com energia e sugestiva força de convicção. Essa impressão era muito mais profunda do que o próprio discurso, do qual não me ficou muita coisa na memória.

Além disso, fui arrastado pelo entusiasmo que, frase após frase, animava o orador, dando até a impressão de que seu corpo se erguia assim excitado por suas palavras. Hitler anulou os argumentos dos céticos. Os adversários não puderam falar. Daí adveio, pelo menos momentaneamente, a falta de impressão de unanimidade. Ao terminar sua fala, Hitler parecia já estar falando não para convencer-nos, mas ele mesmo dava a impressão de estar convencido de que o público esperava que ele falasse como estivera falando. Parecia-lhe a coisa mais lógica, no mundo, levar por onde se quisesse os estudantes e uma parte do professorado das duas maiores universidades da Alemanha. E note-se que isso ocorria em um momento em que ele não dispunha ainda do poder absoluto, encouraçado contra qualquer crítica, mas estava exposto a ataques de todos os lados.

Muitos discutiriam, bebendo cerveja, os acontecimentos excitantes da véspera. Meus alunos solicitaram-me isso. Mas eu desejava aclarar minhas idéias, desfazer a minha confusão, ser dono dos meus sentimentos, e por isso senti a necessidade de estar só. Solicitado por sentimentos desencontrados, à noite, tomei meu carro, dirigi-me a um pinheiral na zona de Havel e caminhei por algum tempo.

Pareceu-me que naquele homem havia uma esperança, novos ideais, nova compreensão das coisas, novas tarefas a executar. Também me pareciam agora anuladas a sombria expedições de Sprengler, ao mesmo tempo que se cumpria seu vaticínio relativo à vinda de um imperador. Era necessário afastar o perigo do comunismo, o qual, segundo Hitler nos convenceu, parecia estar se aproximando, inelutavelmente do poder. E, por fim, bem poderia haver um reconhecimento econômico, em vez da desolada imagem do desemprego do operariado. O problema judaico só foi mencionado marginalmente. No entanto, tais observações não me impressionavam, pois eu não era anti-semita, tinha amigos judeus dos tempos de escola e de cursos superiores, como, na realidade, quase todos os demais.

Algumas semanas depois daquele discurso, tão importante para mim, meus amigos levaram-me a uma manifestação no Palácio dos Esportes, em que falaria Goebells, chefe da região de Berlim. Tive uma  impressão muito diferente daquela que produziu Hitler; muitas frases bem colocadas, formuladas de modo categórico; a multidão rugia, levava a explosões de entusiasmo e de ódio, cada vez mais fanáticas; um furacão de paixões desempregadas, como até então eu somente presenciada durante as corridas de bicicleta de seis dias. Senti repugnância, tendo diminuído o efeito positivo produzido por Hitler, embora não se tivesse extinto, inteiramente.

Esvaziou-se o Palácio dos Esportes, público desceu em calma a Potsdamerstrasse. O discurso de Goebells infundiu confiança àquela gente, que ocupou, em atitude de provocação, toda a largura do calçamento, impedindo o tráfego de veículos. A polícia não interveio, talvez por não pretender irritar a multidão. Mas nas esquinas estavam formações de cavalarianos, de caminhões e de infantes, que poderiam intervir, se necessário. E isso tinha por finalidade separar os comunistas dos nacional-socialistas. Afinal a polícia interveio e de cassetete em punho avançou sobre a multidão, a fim de esvaziar o calçamento. Nada houve além da carga de policiais, pois não se registrou nenhum ferimento. Alguns dias depois - ja janeiro de 1931 - filiei-me ao Partido Nacional Socialista, sendo 474.481 o meu número de inscrição.

Minha decisão não tinha nada de dramática. Nem me senti membro de um partido político. Não escolhi o NSDAP, e sim aproximei-me de Hitler, cuja figura me impressionou, já no primeiro encontro, e assim seria daquela data em diante. Sua força de expressão, a magia própria da sua voz, nada agradável; estranha forma de comportamento, antes vulgar; a sedutora simplicidade com que tratava de nossos complicados problemas; tudo isso produziu confusão em mim e me  fascinou também. Hitler apoderou-se de mim, antes de eu ter compreendido o alcance do seu movimento.

Nem me importunou minha ida a uma reunião popular, organizada pelo Kampfbund Deutscher Kultur (Movimento da Defesa da Cultura Alemã - N. do E.), embora nessa ocasião fossem condenadas muitas das aspirações do professor Tessenov. Um dos oradores exigia a volta às tradicionais formas de concepções da arte, atacou o modernismo, que finalmente reverteu contra a associação de arquitetos Der Ring, a que pertenciam, além de Tessenov, Gropius, Mies van der Rohe, Schroun, Mendelsohn, Taut, Behrens e Poelzig. Depois disso, um dos nossos alunos enviou uma carta a Hitler, na qual protestava contra aquele discurso e, entusiasmado, defendia nosso mestre. Não demorou muito em receber uma resposta, meio familiar, veio convencional, na qual se afirmava que a obra do professor Tessenov gozava da maior estima. Isso nos pareceu muito importante. É verdade que até então eu não revelara a Tessenov que pertencia ao Partido Nacional Socialista.

Creio que foi naquele período que minha mãe viu um desfile das SA nas ruas de Heidelberg. Sentiu-se também impressionada ao ver naquela demonstração de ordem, em um tempo de caos, o censo de energia que ser irradiava daquele partido, sem ter ouvido um discurso, sem ter lido sequer um prospecto impresso. Ambos parecíamos sentir esta decisão como a rotura de uma tradição familiar liberal. De qualquer modo, mantivemos oculta entre nós dois a nossa decisão, sem revelar nada ao meu pai. Somente anos depois, quando pertencia ao círculo pessoal de Hitler, foi que descobrimos por acaso que ambos pertencíamos, havia muito, ao partido. 

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