domingo, 13 de janeiro de 2013

Albert Speer - Por dentro do III Reich (04)


Capítulo quatro - O meu catalisador

Não obstante ser, de natureza, aplicado as minhas tarefas, sempre necessitei de um impulso especial para desenvolver novas faculdades e energias. Agora encontrara o meu catalisador. Não podia ter achado outro mais poderoso e que atuasse com maior força. Exigia a atuação de todas as minhas energias em um ritmo continuamente acelerado e com o esforço cada vez maior.

Assim, tive  de renunciar ao verdadeiro centro da minha vida: a família. Atraído e estimulado por Hitler, em cujas mãos estava, eu contava que somente com o trabalho, que não me deixava o momento de repouso. Hitler sabia como estimular os seus colaboradores a que despendessem os máximos esforços de que fossem capazes. Uma das suas frases era: "O homem cresce com seus mais altos ideais".

O durante os vinte anos de minha reclusão na prisão de Spandau, perguntaram-me várias vezes o que eu teria feito se ele tivesse compreendido o autêntico modo de ser de Hitler e a verdadeira natureza do poderio estabelecido por ele. A resposta era banal e deprimente ao mesmo tempo. Não tardou que se tornasse imprescindível a minha função de arquiteto junto à crítica. Ainda não tinha 30 anos e via à minha frente as perspectivas mais animadoras com que possa sonhar um arquiteto.

No afã no meu trabalho eu tinha um acúmulo de problemas, é nessas circunstâncias não podia dar atenção a certas irregularidades de somenos importância. Ao escrever estas memórias, vi acentuar-se minha surpresa, chegando até à consternação, quando verifiquei que antes de 1944 eu não dispunha quase nunca de tempo para refletir sobre meu próprio esforço. Jamais me detivera de maneira reflexiva sobre minha própria existência. Hoje, ao recordar o passado, tenho às vezes a impressão de que naquela época eu estava pairando um pouco acima do chão, desprendendo-me nas raízes que me tinham atado à terra e deixando-me dominar por forças estranhas a mim.

Nesse olhar retrospectivo, o que mais me angustia é sentir que a inquietação do naqueles dias estivesse relacionada, fundamentalmente, com os meus deveres de arquiteto, com o afastamento das doutrinas de Tessenov. No entanto, sinto que, pessoalmente, nada tinha a ver com os fatos, quando sabia que os judeus, os maçons, os social-democratas, as testemunhas de Jeová, que me rodeavam, eram condenados e perseguidos como feras. Para mim bastava não participar, pessoalmente, daqueles acontecimentos.

O modesto camarada do partido era educado no sentido de ficar incapaz de entender o sentido da grande política. Acima desse nacional-socialista havia outros que respondiam por ele, de modo que não lhe fosse dado pedir explicações a respeito da sua própria responsabilidade. Toda a estrutura partidária funcionava para evitar, completamente, que surgissem conflitos de consciência, do que resultava uma absoluta esterilidade nas conversas de trocas de idéias entre pessoas que pensavam sobre o mesmo critério. Era inútil proceder de modo contrário a opiniões uniformes.

Mais grave era que cada um tivesse que limitar a sua responsabilidade à própria esfera de atividade, sendo isso expressamente exigido. Cada qual se movia dentro da própria esfera, fossem médicos, jurisconsultos, técnicos, soldados ou camponeses. As raízes de nossa tendência a aceitar esse sistema teriam de ser pesquisadas em nossa própria juventude. As raízes de nossa ação e pensamentos provinham de um Estado autoritário, e que, além disso, em uma época na qual as leis da guerra tinham enrijecido ainda mais o caráter da subordinação. Talvez tenha sido essas experiências que prepararam nossa maneira de pensar, como se fôssemos soldados, um modo de pensar outra vez propício ao sistema hitlerista. Trazemos dentro do nosso sangue a semente de uma ordem rígida. Comparado com essa ordem, o liberalismo da República de Weimar,  parecia-nos frouxo, discutível e de nenhum modo merecedor de confiança.



Para manter sempre  contato com o meu contratante, instalei em meu escritório em um estúdio de pintor na Behrenstrasse, a poucas centenas de metros distante da chancelaria. Meus auxiliares, tudo jovens, trabalhavam de manhã à noite. A refeição do meio-dia era substituída por alimentos leves. Afinal, esgotados, terminávamos o dia às dez horas da noite, comíamos algo mais sólido no Pfälzer Weinstube, nas redondezas, onde ainda uma vez analisávamos os trabalhos feitos durante o dia.

Sem dúvida, tive de esperar pelos grandes encargos. Hitler confiou-me a execução de trabalhos de ocasião, apressados, pois me parecia que ele achava que minha principal característica estava em executar com rapidez as incumbências recebidas. Nos primeiros meses do ano de 1933, havia sempre uma multidão a solicitar audiência ao Führer. Essa gente vinha sempre em grupos, e na sala não se apropriava mais para o trabalho. Hitler, já não suportando a situação, disse:

- É muito pequeno este local! Com  seus 60 m2 dá somente para um dos meus auxiliares. Onde vou sentar, quando houver convidados especiais? Talvez neste cantinho? Ele esta mesa de despacho tem o tamanho exato para servir ao chefe do meu escritório.

Hitler encarregou-me de transformar uma sala que dava para o jardim em um novo gabinete de despachos. Esteve aí cinco anos, considerando entretanto esse local como provisório. Mas não tardou a achar insuficiente seu gabinete no novo edifício da chancelaria do Reich, construído em 1938. De acordo com suas indicações e apoiando-me em seus projetos, deveria estar edificada em 1950 uma chancelaria definitiva. Nessa chancelaria, tinha-se previsto para Hitler e sucessores, nos séculos futuros, um salão de trabalho, com 960 m2, 16 vezes maior do que o gabinete do antecessor.

O antigo gabinete não deveria ser mais utilizado. Hitler queria ir sem embaraços ao novo "balcão histórico", que eu mandara fazer com a máxima urgência, a fim de mostrar-se melhor à multidão.

- A janela era muito incômoda -  disse-me ele, satisfeito. - Eu não era visto de todos os lados. Afinal de contas, eu não iria estar me debruçado sobre o peitoril...

O arquiteto da primeira edificação da chancelaria, professor Eduard Jobst Siedler, da Escola Técnica de Berlim, formulou objeções àquela intromissão, que, segundo ele, atentava contra o direito de autor da obra. Hitler rechaçou sarcasticamente aquela objeção, dizendo:

- Siedler alterou toda a Wilhelmsplatz. O edifício mais parece feito para os escritórios de uma fábrica de sabão do que para a sede de um órgão do governo, o centro do Reich. Supõe ele que teria de construir também o balcão?

Mas Hitler consentiu em que fosse ressarcido o dano do professor, encarregando-o de uma obra.

Poucos meses depois, eu mandei fazer barracões em que se alojassem os operários de uma autopista que se iniciara. Hitler criticou os alojamentos até então utilizados e quis que eu apresentasse um projeto que pudesse ser utilizado para todos os acampamentos. Hitler preocupou-se com os detalhes dessa obra-modelo e pediu-me que o informasse da reação dos trabalhadores.

Enquanto se executava a reforma da sua residência de chanceler, Hitler usou a do seu secretário de Estado Lammers, no último pavimento do edifício oficial. Aí eu era seu frequente comensal, no almoço ou na ceia. À noite, era habitual o encontro do pessoal que acompanhava constantemente Hitler: o chofer Schreck, que estava no serviço havia muitos anos; o porta-estandartes da guarda pessoal das SS de Hitler, Sepp Dietrich; o chefe de imprensa, doutor Otto Dietrich; os dois ajudantes-de-ordens, Brückner e Schaub, como também Heinrich Hoffmann, fotógrafo de Hitler. Os ministros apresentavam-se uma vez ou outra. Não via Roehm ou Streicher. Ao contrário havia freqüentemente Goebells e Goering. Já naquela época estavam excluídos todos os funcionários que atendiam a Hitler. Por exemplo, me chamava a atenção o fato de que inclusive Lammers, apesar de ser o dono da casa, jamais fora convidado, com certeza por muito boas razões.

Muitas vezes, Hitler comentava os acontecimentos do dia. Gostava também de dizer como fizera para desvencilhar-se do cerco da burocracia, que ameaçava tolher as atividades da chancelaria do Reich.

- Nas primeiras semanas apresentaram-me qualquer assunto insignificante para minha solução. Todos os dias, eu encontrava em minha mesa um monte de papéis, cuja altura não diminuía, não obstante os meus esforços em assiná-los. Afinal, cortei essa insensatez, radicalmente. Se continuasse assim, jamais conseguiria resultados positivos. Eu não disponha de tempo para refletir. Quando me neguei a examinar os processos, disseram-me que isso iria concorrer para a demora de decisões importantes. Somente depois disso foi que eu pude pensar em assuntos de grande alcance, que eu tinha de resolver, determinar o curso dos acontecimentos, em vez de serem os funcionários que iriam decidir sobre minha maneira de agir.

Também falava, às vezes, de suas viagens:

- Schreck era o melhor motorista que se possa imaginar. Alcançava os cento e setenta, usando o compressor. Viajávamos sempre a grande velocidade. Mas, nos últimos anos, recomendei a Schreck que não fosse além dos oitenta. Impossível imaginar o que ocorreria, se acontecesse alguma coisa comigo. Os carros norte-americanos são uma verdadeira porcaria, comparados com um Mercedes. O motor não aguentava o esforço, começa a falhar depois de algum tempo, e os proprietários tinham de ficar detidos com cara de bobos à margem da estrada.

À noite, montava-se um primitivo projetor de filmes, para a exibição do noticiário semanal, e de uma ou duas fitas para distração. No princípio, os criados não sabiam manejar o aparelho. Às vezes, as figuras apareciam invertidas na tela, ou o filme se rompia. Naquele tempo, Hitler suportava essas contrariedades mais tranquilo do que os seus acompanhantes. Hitler encarregava Goebells de escolher os filmes, os quais, em geral, eram os que estavam sendo exibidos nos cinemas de Berlim. Hitler preferia filmes de amor comum, informativos ou frívolos. No entanto tiveram de ser procuradas com pressa as fitas em que atuavam Jannins e Rürmann, com Henry Porten, Lil Dagover, Olga Tchecova, Zarah Leander, ou Jenny Jugo. As película em que apareciam pernas nuas eram acolhidas com aplausos. Freqüentes vezes, víamos fitas estrangeiras e aquelas que não eram projetadas para o público alemão. Pelo contrário, faltavam quase inteiramente película sobre esportes, de paisagens montanheses, nunca sendo exibidas as que mostravam animais e vistas do campo, como também as que davam informações sobre países estrangeiros. Hitler não se interessava em fitas cômicas, das quais eu gostava, em que eram atores Carlitos ou Buster Keaton.

Durante uma daquelas reuniões, no inverno de 1933, estando eu sentado ao lado de Goering, este perguntou:

- Meu Führer, Speer está construindo a sua residência? É seu arquiteto?

Eu não o era mas Hitler respondeu que sim.

- Permita-me então que ele faça uma reforma tem minha casa.

Hitler deu o consentimento. Depois da refeição, sem indagar das minhas preferências e ideias, Goering convidou-me a entrar em seu automóvel aberto, para levar-me à sua residência como se eu fosse um troféu valioso. Escolheu para sua casa a antiga residência oficial do ministro prussiano do Comércio, rodeada de um jardim que se estendia por trás da Leipziger Platz. Era um palácio que o Estado construíra sem reparar em despesas.

Havia poucos meses que essa residência fora reformada, dispendiosa mente, conforme as indicações de Goering, que para isso se utilizou do dinheiro do Estado da Prússia. Hitler inspecionou a obra concluída e ele mostrou-se insatisfeito:

- Muito escura! Como se pode viver de uma escuridão dessas? Compare isso com o trabalho do meu professor: muito claro, cheio de luzes e simples.

Realmente, encontrei um conjunto de saletas românticas, com nichos, escuras janelas envidraçadas, grossos tapetes, tudo mobiliado segundo o estilo Renascimento. O conjunto causava impressão desfavorável. Havia também uma espécie de capela, dedicada à cruz suástica. Mas este símbolo estava entre as paredes, o forro e o piso de saletas contíguas.

Um indício daquele sistema, talvez ocorrente em todas as formas de uma sociedade submetida a princípios autoritários, foi a maneira como se transformou, imediatamente, Goering, ao ouvir a crítica de Hitler, pois sem perda de tempo abandonou a instalação, há pouco terminada, conforme suas instruções, apesar de com certeza sentir-se mais à vontade nela, pois correspondia à sua maneira de ser.

- Dê uma olhada nisto. Eu já nem quero ver. Proceda como quiser. Eu lhe entrego a obra. A única coisa que eu quero é que fique como lá do Führer.

Foi uma incumbência magnífica. Como sempre, em se tratando de Goering, o dinheiro não tinha nenhuma importância. Derrubaram-se paredes para se transformarem em quatro salas os numerosos quartos do rés-do-chão. A maior dessas salas, a do seu gabinete, media 140 m2, e portanto suas dimensões aproximavam-se das da sala de Hitler. Acrescentou-se ao antigo edifício um anexo feito de ornamentos de bronze embutidos em cristal. O bronze estava escasso, era considerado metal precioso, havendo castigo para quem usasse dele abusivamente. Mas isso não afetou Goering, de modo algum. Quando inspecionava as obras, entusiasmava-se, com o rosto sorridente como o de um menino em festa de aniversário, expressando sua alegria com o esfregar de mãos e rindo.

Os móveis de Goering estavam de acordo com o seu corpo. Uma antiga mesa para secretaria, estilo Renascimento, tinha dimensões extraordinárias. Também havia uma poltrona cujo encosto se elevava muito acima da cabeça. Talvez tivesse sido o trono de algum rei. Na mesa do gabinete, mandou colocar dois candelabros de prata com abajures de folhas de pergaminho, além de uma fotografia muito grande de Hitler. Não achava muito vistoso o original com o que o presenteara o Führer. No vestíbulo, foi retirado um quadro de grandes dimensões, a fim de haver um lugar para uma câmara cinematográfica, por trás da parede. Eu já tinha visto esse quadro. De fato, Goering, segundo fui informado, ordenara ao "seu" diretor prussiano do Museu do Imperador Frederico que levasse para sua casa - a de Goering - o célebre quadro de Rubens, "Diana caçando o cervo", até então uma das mais importantes obras-primas naquele museu.

Durante o tempo de reforma de sua residência, Goering morou no palácio do presidente do Reichtag, em frente, ao edifício dos começos do século XX, com fortes reminiscências de um rococó de novo-rico. Aí nós conversávamos sobre a forma na sede definitiva. Freqüentemente, estava presente um dos diretores da Vereinigten Werkstäten, o Sr. Paepke, cavalheiro de cabelos encanecidos, já bastante idoso, com boas intenções de agradar Goering, mas intimidado pela maneira seca e meio dura como este tratava seus subordinados. Um dia, estávamos sentados com Goering em uma peça cujas paredes, em estilo neo-rococó guilerminesco, que estavam enfeitadas de cima a baixo com rosas em relevo cheio. Resumo e conceito do autêntico idiota. Goering também sabia disso, quando começou a perguntar:

- Que lhe parece esta decoração, senhor diretor? Não está mal, não lhe parece?

Em vez de responder: "Isto é horroroso", o velho cavalheiro deu uma resposta evasiva, não querendo indispor-se com o seu poderoso patrão e cliente. Goering tolerou essa evasiva, piscando-me um olho.

- Mas, senhor diretor, não acha isso bonito? Pretendo que o senhor faça uma decoração idêntica em todas as peças. Já falamos nisso, não é? Sr. Speer?

- Sim, naturalmente, já estão em andamento os desenhos.

- Bem, já vê, senhor diretor, este  é o nosso novo estilo. Tenho certeza de que lhe agradará.

O diretor não sabia o que fazer. A testa estava suarenta e  a barba pontuda tremia, sob o efeito da excitação. Goering estava resolvido a obrigar o ancião a manifestar-se, claramente, em um ou outro sentido, e continuou:

- Vejamos. Repare com toda a atenção nesta parede. Veja como as rosas brotam, maravilhosamente, como se fosse na primavera. O senhor não sente entusiasmo por isso?

- Claro que sim, claro que sim - opinou timidamente o desesperado personagem.

- Mas o senhor devia sentir-se entusiasmado por uma obra de arte com esta, sendo, como é, um notável conhecedor de arte. Diga-me: não acha precioso?

Goering continua a brincadeira até que o diretor cedeu e simulou o entusiasmo que lhe era exigido.

- Assim são todos - exclamou Goering por trás do professor, tomado de desprezo.

De fato, assim eram todos, entre os quais convinha incluir o próprio Goering, que, durante as refeições do domicílio de Hitler, não se cansava de proclamar que sua residência seria agora tão clara e grandiosa com a do seu chefe: "É exatamente como a sua, meu Führer".

Se Hitler tivesse ordenado pelegos com rosas nas paredes de seus quartos, Goering também teria exigido rosas iguais.

No inverno de 1933, poucos meses depois daquela decisiva refeição em casa de Hitler, foi admitido no círculo dos seus mais íntimos colaboradores. Eu ainda estava muito distante da minha posterior orientação classicista. Por acaso se tinham conservado os projetos de um concurso para a construção de uma escola de comandos do NSDAP em Munique-Grünewald, do qual participaram todos os arquitetos alemães. Hitler examinou como Troost e comigo os desenhos deste concurso, antes da respectiva classificação. Segundo norma habitual, os desenhos tinham sido entregues sob anonimato. O meu não foi aceito. Somente depois de concedido o prêmio procedeu-se à verificação dos pseudônimos. Troost referia-se ao meu desenho em uma conversa, que Hitler, para meu assombro, foi capaz de recordar os meus esboços, apesar de termos visto apenas por uns segundos entre muitos outros. Ouviu em silêncio ou elogio formulado por Troost. Talvez tenha pensado então que eu ainda estava longe de ser um bom arquiteto de acordo com suas idéias.

Hitler ia a Munique com intervalos de duas ou três semanas. Eram cada vez mais freqüentes minhas idas com ele em tais viagens. Quando descer do trem, dirigia-se logo no escritório do professor Troost. Ainda no trem, Hitler costumava falar com vivacidade a respeito dos esboços que o professor teria feito:

- Talvez tenha feito alguma alteração no projeto da Academia de Belas-Artes. Tinha de melhorar um pouco... já estarão desenhados os detalhes do refeitório? É bem possível que possamos ver os esboços das esculturas de Wackerle.

O escritório estava em um pátio descuidado, por trás da Theresienstrasse, não longe da Escola Técnica Superior. Por uma escada descoberta, que não era pintada havia anos, tinha-se de subir dois lances até chegar ao escritório de Troost. Este, consciente de sua posição, jamais saía a receber Hitler na escada, nem o acompanhava quando saía. Hitler cumprimentava-o na ante-sala.

- Não posso esperar, senhor professor. Mostre-nos as novidades.

Hitler e eu  passávamos logo à sala do trabalho. Aí, Troost, com um sentimento de segurança, reservado como sempre, mostrava seus projetos e esboços. No entanto, Troost não obtinha mais do que eu conseguiria mais tarde. Hitler não deixava perceber seu entusiasmo. Em seguida, o "senhor professor" exibia amostras de cores de telas e tons das paredes, que seriam empregados na decoração das dependências da Casa de Comandos em Munique. Tudo combinado de maneira discreta e elegante. Na realidade, muito discreta para o gosto de Hitler, orientado no sentido da produção de efeitos. Mas agradaram-lhe. Depois de 2 horas ou mais, Hitler despedia-se com palavras bem breves, mas cordialmente, dirigindo-se à sua residência. Quanto a mim, dizia rapidamente:

- À osterìa.

Na hora normal, mais ou menos às duas e meia, eu me encaminhava à Osterìa Baviera, o pequeno restaurante freqüentado por artistas, que de repente ficou afamado porque Hitler fazia lá suas refeições. Ele sentia-se bem na osterìa; como "artista que não se realizara" agradava-lhe aquele ambiente, ao qual aspirada pertencer e que agora tinha perdido, deixando para trás, definitivamente. Não era raro que o limitado número de convidados o esperasse, horas e horas. Eram um ajudante do chefe regional da Baviera, Wagner, no caso de já ter curtido a sua embriaguez; naturalmente, seu acompanhante; e Hoffmann, fotógrafo oficial que, naquele tempo, de vez em quando se apresentava ligeiramente alcoolizado; com muita frequência, a simpática Lady Mitford; e, algumas vezes, embora raras, um pintor ou um escultor. Depois, também o Dr. Dietrich, o chefe de imprensa do Reich, e, sempre, Martin Bormann, o secretário aparentemente insignificante de Rudolf Hess. Na rua, algumas centenas de homens. Bastava-lhes nossa presença para saberem que "ele" vinha.

Um grande júbilo na rua. Hitler aproximava-se do local onde estava a nossa mesa, protegida em um dos lados por um tabique de altura mediana. Quando o tempo estava bom, nós nos sentávamos em um pequeno pátio, que pretendia ser um lugar para ceias. O dono do restaurante e as duas empregadas eram cumprimentados com jovialidade.

- Que temos hoje de bom? Raviólis? É pena que sejam tão saborosas. São muito tentadores.

Hitler estalava os dedos.

- Tudo em sua casa é magnífico, Sr. Deutelmoser. Mas veja a minha linha. Esquece que o Führer não pode comer tudo o que ele apetece.

Depois que examinava o longo cardápio acabava escolhendo os raviólis. Cada um pedia o que lhe agradava:  filés, goulash e também o bom vinho da Hungria. Apesar dos ocasionais gracejos de Hitler a propósito dos "devoradores de faisandés", "bebedores de vinho", lá todos comiam e bebiam sem embaraço. Estavam entre amigos. Tinham chegado a um acordo tácito: não se falava de política. A única exceção era a Lady Mitford, que, mesmo nos anos de tensão que se seguiram, lutou tenazmente em defesa da sua pátria, a Inglaterra, suplicando muitas vezes a Hitler que fizesse um acordo com a Grã-Bretanha. Apesar da reserva de Hitler, reserva  que significava recusa, essa mulher não demonstrou a menor fadiga em sua atitude, no decurso de anos. Mais tarde, em setembro de 1939, tentou suicidar-se com uma pistola muito pequena, no dia da declaração de guerra à Inglaterra. Isso ocorreu no Jardim Inglês de Munique. Hitler entregou-a aos melhores médicos de Munique e ordenou que ela fosse sem demora enviada ao seu país natal, em um carro oficial, transitando pela Suíça.

Durante daquelas refeições, o assunto principal era a visita feita ao professor, pela manhã. Hitler exagerava os seus elogios. Todos os detalhes ficavam-lhe na memória sem esforço. Suas relações com Troost pareciam-se com as de um discípulo em relação ao professor. Lembravam-me minha admiração por Tessenov, careciam de crítica. Esse traço do caráter de Hitler agradava-me muito. Para mim, era motivo de assombro que aquele homem, adorado como um deus pelas pessoas que o rodeavam, fosse capaz de sentir por outra pessoa uma espécie de veneração. Hitler, que, pessoalmente, se considerava arquiteto, respeitava, nesse campo, a superioridade do especialista na matéria, coisa que jamais teria feito em se tratando de política.

Narrava com frequência como chegaram a travar conhecimento com Croce, por intermédio dos Bruckmann, uma culta família de editores de Munique. Segundo suas próprias palavras, quando viu os trabalhos de Troost, pareceu-lhe que "caiu um véu nos seus olhos".

- Passei a não suportar o que tinha desenhado, até então. Que sorte conhecer esse homem!

A arquitetura de Troost era realmente sóbria e, assim, sua influência sobre Hitler manifestou-se no caráter de um episódio. Hitler elogiou até o fim os arquitetos  e obras que tinham servido de modelo em que seus antigos esboços: o grande Ópera de Paris (1816-1874) de Charles Garnier.

- Sua escadaria é a mais famosa do mundo. Por ela desceram as senhoras com suas esquisitas cabeleiras. Homens uniformizados, que ambos os lados... Sr. Speer, nós devemos construir um edifício também assim.

Do mesmo modo, sentia-se entusiasmado pela Ópera de Viena.

- É o teatro de ópera mais maravilhoso do mundo. A acústica é perfeita. Quando eu, moço, me sentava ali na última fila de lugares...

Relativamente ao segundo arquiteto daquele teatro, Van der Nüll, Hitler contava o seguinte:

- Ele suponha que o seu Ópera tinha ficado defeituoso. Veja a que extremos chegaria seu desespero, ao dar um tiro na cabeça no dia da inauguração. Mas essa inauguração foi o maior dos seus êxitos. Toda a gente elogiou os arquitetos.

Em tais ocasiões, não era raro que concluísse por se referir aos momentos difíceis por que passara, como sempre fora salvo por uma mudança favorável nos acontecimentos. Terminava dizendo: "Não se deve ceder nunca".

Suas preferências inclinavam-se de modo especial para os numerosos e edifícios teatrais, levantados por Hermann Helmer (1849-1919) e Ferlinand Fellner (1847-1916), os quais se identificaram teatros não somente na Áustria-Hungria como também na Alemanha, nos fins do século XIX, orientados pelo mesmo estilo: um barroco tardio. Hitler sabia em que cidades havia edifícios construídos por esses homens e mais tarde mandou reformar  o descuidado teatro existente em Augsburgo. Mas também estimava os severos arquitetos do século XIX, Gottfried Semper (1803-1879), construtor da ópera e da pinacoteca de Dresden, do Palácio Imperial e dos museus da corte de Viena; também Theophil Hansen (1803-1883), que edificara em Atenas e em Viena alguns importantes prédios do estilo classicista. Logo depois da entrada das tropas alemãs em Bruxelas (1940), tive de ir àquela capital para examinar o gigantesco Palácio da Justiça, de Poelaert (1817-1879), pelo qual Hitler sentia grande entusiasmo. Mas, tal como o Ópera de Paris, ele só os conhecia pelas plantas. Quando eu regressei, pediu-me todos os pormenores a respeito daquele palácio.

Esse era um mundo de arquitetura de Hitler. No final, ia ter ao falado neobarroco, que também Guilherme II recomendara ao arquiteto do seu palácio, Ihne. Também lhe ocorria o mesmo no tocante à pintura e escultura, nas quais se refletia o mundo da sua juventude, o mundo compreendido entre os anos de 1880 e 1910,  que emprestou características especiais tanto ao seu gosto artístico como ao seu pensamento político e ideológico.

As tendências contraditórias caracterizavam a maneira de ser de Hitler. Por exemplo, era capaz de falar entusiasmado das maravilhas arquitetônicas de Viena, que talvez lhe estivessem gravadas na memória desde a juventude, e explicava:

- Foi com Troost que aprendi, pela primeira vez, o que era realmente arquitetura. Quando o partido dispôs de maiores recursos, encarreguei-o de reformar de mobiliar a Casa Cinzenta. Já vi o resultado. Mas quantas dificuldades encontrei por causa disso...

Paul Ludwig Troost nascera na Vestfália,  sendo de estatura elevada, delgado, de cabeça totalmente raspada. Reservado no falar, gestos sóbrios, pertencia a um grupo de arquitetos tais como: Peter Behrens, Joseph M. Olbrich, Bruno Paul e Walter Gropius. Desde antes de 1914, estes eram os representantes de uma nação orientada no sentido do emprego de métodos arquitetônicos parcos, quase desprovidos de adornos, e de um tradicionalismo espartano, unidos a elementos modernos. Sem dúvida Troost obteve êxitos ocasionais em alguns concursos: mas jamais pôde exceder os grupos de vanguarda antes de 1933.

Não havia de modo nenhum "estilo do Führer", por mais que a imprensa do partido falasse disso. O que foi declarado como arquitetura oficial do Reich era unicamente o neoclassicismo de Troost, depois transformado, exagerado e mesmo desfigurado até o ridículo. Hitler apreciava no estilo classicista seu caráter supratemporal. Ele acreditava ter encontrado na época dórica alguns pontos de conexão com o seu mundo germânico. Entretanto, estaria equivocado quem buscasse, no caso de Hitler, um estilo arquitetônico com base ideológica. Isso não se considerava com seu pensamento pragmático.



Não há dúvida que Hitler tinha um objetivo determinado ao levar-me consigo, regularmente, a Munique para examinar cobras. Era evidente que pretendia fazer de mim um discípulo de Troost. Eu, sempre disposto a aumentar meus conhecimentos, aprendi realmente muito com esse arquiteto. A rica arquitetura de meu segundo mestre, embora reservada em sua limitação a elementos construtivos simples, influiu em mim de maneira decisiva.

Ele terminara a extensa conversa de sobremesa no restaurante Baviera:

- O professor disse-me hoje que a escadaria da casa será um trabalho de artesanato. Mal posso acreditar. Brückner, mande vir o carro. Vamos sair já. O senhor vem comigo, não é?

Dirigiu-se rapidamente à  escadaria da construção, olhou-a debaixo para cima, de academia. Subiu outra vez e acabou mostrando-se a encantado. Finalmente, a obra fora inspecionada pelo  Führer, sob todos os ângulos. Hitler tinha um conhecimento exato de todos os detalhes, demonstrando-o uma vez mais, de modo que assombrou a todos que trabalhavam na obra. Satisfeito com o andamento dos trabalhos, satisfeito consigo mesmo por ser a causa e o motor da edificação, dirigiu-se ao próximo objetivo: a quinta da propriedade de um fotógrafo em Munique-Bogenhausen.

Quando fazia bom tempo, o café era servido no pequeno jardim da quinta, de uns 200 m quadrados e rodeado pelos jardins de outras quintas. Quando havia sol, podia acontecer que o Führer e chanceler do Reich ficasse à americana, em mangas de camisa, estendido em uma rede. Em casa de Hoffman ele sentia-se como se estivesse na sua própria residência. Certa vez pediu um volume de Ludwig Thoma, escolheu um trecho que esteve lendo em voz alta. Hitler sentia especial predileção pelos quadros que o fotógrafo levava para sua escolha. A princípio, admirei-me por ver que espécie de quadros Hoffman apresentava a Hitler. Depois, acostumei-me, embora sem poder dissuadir-me na minha antiga paixão pelos quadros românticos, de Rotmann, Fries ou Kobell, por exemplo.

Um dos pintores preferidos de Hitler e de Hoffmann era Eduard Grüntzner. Os seus quadros com frades e bodegueiros bebendo vinho concordavam melhor com a forma de vida do fotógrafo do que com a de Hitler, que era abstêmio. Mas o Führer examinava essas obras sob um ponto de vista artístico.

- Quê? Custa só cinco mil marcos?

O quadro não teria valido mais do que dois mil marcos, do ponto de vista comercial.

- Sabe, Hoffmann? Isso é uma verdadeira jóia. Veja esses detalhes! Não dão a Grüntzner o valor que ele merece.

A obra seguinte desse pintor custou mais.

- Pois,  precisamente, não foi descoberto. Depois da morte de Rembrandt, passaram-se anos até que fossem apreciados pelo seu real valor os quadros daquele mestre. Na sua época, as obras daquele pintor eram quase dadas. Acredite-me,  este Grützner ficará para o futuro, como Rembrandt, que não poderia ter pintado isto melhor.

Hitler considerava os fins do século XIX uma das maiores épocas da história da humanidade, em todas as esferas da arte. Malart era um dos pintores daquele tempo mais estimados por ele, que também apreciava muito Spitzweg. Apesar de apreciar o grandioso e algumas vezes impressionista Malart, ele gostava de Spitzweg, que, com seu humor amável e sincero, plasmava com ironia o caráter da provinciana Munique daqueles anos.

Para desagradável surpresa do fotógrafo, descobriu-se que um falsário se tinha aproveitado dessas preferências por Spitzweg . No princípio, Hitler aborreceu-se por não poder distinguir quais eram as autênticas entre as pinturas que ele vira de Spitzweg .

- Sabe? As pinturas de Spitzweg, na casa de Hoffman, são em parte falsificadas. E isso se pode verificar, examinando-as. Mas deixemo-lo com sua alegria.

Quando estava em Munique, Hitler se adaptava à maneira de conversar dos bárbaros. Visitava com freqüência o Carltons Teestuben, um estabelecimento pseudoluxuoso, com móveis de estilo inautêntico e aranhas de cristal também falsas. Gostava de ir lá, pois, restando naquela casa, os habitantes de Munique não o importunavam com aplausos e pedidos de autógrafos, como acontecia em outros lugares. Muitas vezes, já à noite, eu recebia um telefonema da casa de Hitler: "O Führer vai ao Café Heck e pede-lhe que vá também". Eu tinha de  saltar da cama, sabendo de antemão que não poderia regressar antes das 2 ou 3 horas da madrugada.

Algumas vezes, Hitler desculpava-se:

- Nos meus tempos de luta, acostumei-me a estas noitadas. Tinha de estar em companhia dos velhos camaradas, depois das reuniões. Ademais, em seguida aos discursos, eu me achava tão excitado que só podia dormir quando a manhã já estava alta.

Ao contrário do Carltons Teestuben, o Café Heck, com suas cadeiras simples de madeira, suas mesas de ferro, no tocante à instalação era a antítese do outro. Antigo café do partido, tinha sido o local onde Hitler, antigamente, se reunia com os companheiros de luta. No entanto, depois de 1933, não se reuniu mais com eles. Eu supunha que ele tivesse em Munique um largo círculo de relações, mas não havia disso. Ao contrário, Hitler ficava mal-humorado quando um de seus antigos correligionários desejava falar-lhe. Quase sempre tinha jeito de afastar essas visitas ou de demorar a atendê-las. Os antigos camaradas do partido nem sempre guardavam a distância que Hitler agora julgava necessária, apesar da sua afabilidade exterior. Freqüentemente, usavam de familiaridade inadequada até certo ponto. O direito que eles se atribuíam para essa intimidade já não se ajustava ao papel histórico que o Führer se tinha atribuído.

Eram muito raras as visitas de Hitler a esses antigos companheiros, os quais se haviam apropriado de quintas senhoriais, desfrutando a maioria deles de cargos importantes. A única reunião era a comemorativa do aniversário do Putsch  de nove de novembro de 1923, que se realizava no Bürgerbräukeller. Note-se que Hitler não sentia a menor alegria por esse reencontro, mas freqüentes vezes manifestava seu desagrado por essa espécie de obrigação.

Depois de 1933, constituíram-se rapidamente diversos círculos, afastados uns dos outros, e que se espionavam reciprocamente, rivalizando uns com os outros e desprezando-se mutuamente. Isso se relacionava também com o fato de se terem formado círculos em torno de cada dignatário. Assim, Himmler tratava quase exclusivamente com os homens da SS, que lhe dedicavam uma veneração incondicional. Goering tinha em redor de si um grupo de admiradores fanáticos, constituídos em parte pelos seus mais imediatos colaboradores e ajudantes. Goebells sentia-se à vontade no meio de um grupo de admiradores procedentes dos setores de literatura e do cinema. Hess ocupava-se dos seus problemas de curas com a homeopatia, gostava de música de câmara e tinha conhecimentos excêntricos, embora também interessantes.

Goebbels, considerando-se intelectual, olhava por cima do ombro os incultos pequenos burgueses dos grupos de direção de Munique. Estes, por sua vez, zombavam das ambições literárias do presumido doutor. Por sua parte, Goering não julgava à sua altura nem os pequenos burgueses de Munique nem Goebbels, evitando qualquer relação social com uns e outro. Enquanto isso, Himmler, preocupado com os homens das SS, que se consideravam pessoas de elite, e que se envaideciam com as preferências demonstradas pelos filhos de príncipes e condes, considerava-se muito acima dos demais. Também Hitler possuía um grupo seu, íntimo, que ia com ele a todos os lugares, composto sempre das mesmas pessoas: motoristas, fotógrafos, piloto e secretários.

É bem verdade que Hitler unia, politicamente, aqueles círculos tão divergentes entre si. Mas nas refeições ou nas sessões de cinema, depois de um ano de conquista do poder, não se via Himmler, Goering ou Hess com a frequência que seria admissível em uma sociedade vinculada ao novo regime. E, nos encontros, o interesse deles achava ser tão concentrado em Hitler e seu favor que os contatos marginais com os demais grupos tinham efeitos nulos. Também Hitler não estimulava uma união social do grupo constituinte da chefatura. Quando mais adiante se tornou mais crítico o desenvolvimento dos acontecimentos, as iniciativas recíprocas de aproximação eram observadas com desconfiança. Somente quando tudo  já estava terminado (já no cativeiro), as hierarquias ainda restantes daquele mundo em miniatura, fechado nele mesmo, reuniram-se pela primeira vez em um hotel, no Luxemburgo, embora à força, é verdade.

Quando estava em Munique, Hitler pouco se ocupava de assuntos governamentais ou do partido, menos do que quando ficava em Berlim ou Obersaltzberg. Geralmente, só dispunha de uma ou duas horas por dia para as conferências. A maior parte do tempo  empregava vagabundeando, visitando obras de construção, estúdios, cafés, restaurantes, falando sozinho, muitas vezes, mas sempre rodeado pelo mesmo pessoal, que conhecia por demais os assunto sempre repetidos e que, fazendo grandes esforços, tratava de esconder o aborrecimento.



Depois de dois ou três dias em Munique, de vez em quando Hitler dava ordem para o preparo de uma viagem à "montanha". Íamos por estradas poeirentas em carros abertos. Ainda não havia a rodovia de Salzburgo, que estava sendo construída com afinco. Quando em sua pousada aldeã, em Lambach am Chiensee, comíamos uma merenda de bolo saborosos, que Hitler deixava de provar fazendo esforço sobre si mesmo. Depois, os ocupantes do segundo e terceiro carros iam comer poeira, outra vez, pois a coluna de automóveis rodava muito fechada. O caminho a Berchtesgaden era uma que estrada tem declive, que nos levava à pequena e agradável casa de madeira que Hitler possuía em Obersaltzberg, uma casa de telhado muito saliente e muito modesta quanto a acomodações: uma sala de refeições, uma sala de estar e três quartos de dormir. Os móveis eram da época dos pequenos armários ornamentais, dando ao ambiente o caráter de uma residência de pequenos burgueses que viviam comodamente. Esta impressão era acentuada por uma gaiola dourada com um canário, um cacto e um eucalipto. Viam-se suásticas em figurinhas, em almofadas bordadas por partidárias de Hitler, ora com um sol nascente ou com a frase "fidelidade eterna". Confuso, Hitler disse-me:

- Sei que estas coisas não são bonitas. Muito do que está aqui recebi de presente. Mas não quero de modo algum separar-me disto.

Depois de algumas horas, chegava um pequeno Mercedes fechado, com as secretárias, a senhorita Wolf e a senhorita Schroeder, quase sempre acompanhadas por uma modesta rapariga de Munique, mais agradável e de bom aspecto do que bonita. Nada indicava ser esta a amante de um homem todo-poderoso: Eva Braun.

Aquele carro fechado não podia jamais ir na coluna dos automóveis oficiais, pois não podia ser identificado como tendo relação com Hitler. As secretárias serviam para disfarçar a chegada da amante. Surpreendeu-me o fato de que Hitler e ela evitassem tudo o que pudessem indicar uma amizade íntima entre ambos, até quando à alta noite tivessem de subir nos quartos de dormir. Nunca pude compreender a razão desse disfarce, mesmo no círculo íntimo, onde não poderia deixar de ser notada a ligação entre ambos.

Eva Braun mantinha-se afastada de todas as pessoas que rodeavam Hitler. Sua conduta para comigo mudou no decurso dos anos. Quando nos conhecemos melhor, verifiquei que as suas maneiras reservadas, para muitas pessoas sinal de altivez, decorriam unicamente de sua timidez. Sabia perfeitamente do caráter inseguro da sua posição na corte de Hitler.

Nos primeiros anos de nosso conhecimento, Hitler ficava na pequena casa só com a Eva Braun, um ajudante-de-ordens e com um criado. Os cinco ou seis convidados, entre eles Martin Bormann, o chefe de imprensa do Reich - Dietrich - e as duas secretárias, acomodavam-se  em uma pensão existente nas proximidades.

O desejo de Hitler de escolher Obersaltzberg para lugar de sua residência parecia testemunhar seu amor à natureza. No entanto, quando fiz esta observação, vi que me equivocara. Talvez admirasse o belo panorama. Mas, em geral, sentia-se mais atraído pela grandiosidade dos fundos abismos do que pela agradável harmonia de uma paisagem. É possível que o sentisse mais do que exprimiam as palavras. Não gostava muito de flores, tolerando-as como elemento decorativo. Em 1943, uma delegação de uma organização feminina berlinense quis receber Hitler, na Estação de Anhalt, propondo-se entregar-lhe um ramalhete de flores, no momento de sua chegada. A chefe dessa delegação falou por telefone a Hanke, secretário do Ministério da Propaganda, para saber quais as flores preferidas de Hitler. Hanke dirigiu-se a mim, dizendo:

- Telefonei a todo mundo e perguntei aos ajudantes-de-ordens, mas em vão. Ele não tem nenhuma flor favorita.

Que depois de refletir um pouco:

- Qual é a sua opinião, senhor Speer? Talvez possamos responder que é Edelweiss... Suponho que esta flor seria a melhor. Não é uma flor muito comum e procede das montanhas da Baviera. Vamos dizer que é Edelweiss.

Desde então essa flor foi que, oficialmente, a "Flor do Führer". Isso demonstra com que a independência. Se dia, em certas ocasiões, a propaganda do partido, ao configurar a imagem de Hitler.

Freqüentemente Hitler falava de grandes excursões que, segundo dizia, realizara antigamente. É verdade que tais excursões eram insignificantes, do ponto de vista de um alpinista. Ele não gostava de alpinismo vem de esquiar nos Alpes.

- Como pode haver alguém que sinta prazer em prolongar de maneira artificial o espantoso inverno, mediante uma permanência nas alturas?

Sua aversão à neve manifestou-se uma ou outra vez, antes da catastrófica campanha de inverno de 1941-1942.

- De boa vontade eu proibiria essa classe de esporte. Ela ocasiona muitas desgraças. Mas as tropas de montanha formam-se com esses loucos.

Nos anos de 1934-1935, Hitler deu longos passeios pelos caminhos da montanha, acompanhado dos seus convidados e de 2 ou 3 funcionários de polícia, pertencentes à sua seção de escolta do estandarte da guarda pessoal. Eva Braun podia acompanhá-lo  nesses passeios, mas no grupo em que estavam as duas secretárias, no fim da coluna.

Ser chamado por Hitler para a frente da coluna era considerado um privilégio, embora a conversa com que ele fosse vagarosamente. Transcorria meia hora, Hitler mudava de companheiro:

- Diga ao chefe de imprensa que venha.

Algumas vezes nos dirigíamos a Hochlenzer, uma pequena pousada montanhosa, outras vezes a Scharitzkehl, onde se bebia cerveja ou um copo de leite, ao ar livre, em mesas singelas de madeira. Era rara uma excursão mais longa. Isso sucedeu uma vez com o Capitão-General von Blomberg, comandante-chefe da Wehrmacht. Por tratarem de graves problemas militares, todos os da comitiva tiveram de manter-se distanciados. Outra vez, fomos com automóvel até Koenigsee e dali, utilizando-nos de uma lancha motor, fomos à península de Bartholomä. Também fizemos uma excursão de 3 horas até Koenigsee, passando por Scharitzkehl. No último trecho do caminho, tivemos de passar por muitos turistas. No princípio, Hitler não foi reconhecido, mas depois, quando chegamos a uma hospedaria, chamada Schiffmeister, formou-se um grande grupo de entusiastas, que tinham reconhecido Hitler e que, animados, nos acompanharam. Precedidos por Hitler, que andava apressado, conseguimos com dificuldade alcançar a porta da hospedaria, antes de sermos cercados pela multidão, cujo número aumentava rapidamente. Enquanto nós sentávamos, diante do café e dos bolos, enchia-se a grande praça fronteira ao edifício. Hitler não subiu ao carro aberto enquanto não chegaram reforços para a guarda. De pé, ao lado do motorista no assento dianteiro, com a mão esquerda no pára-brisa, os turistas puderam vê-lo, até mesmo os que estavam mais afastados. Em tais ocasiões, o entusiasmo era extremo. Afinal, tinha sido premiada uma espera de longas horas. O automóvel movia-se precedido por dois homens da escolta e flanqueado por outros seis, dois de cada lado. O veículo abria caminho lentamente, pelo meio da multidão apinhada. Como na maioria das ocasiões, eu ia sentado em imediatamente atrás de Hitler, e eu não esquecerei jamais daquela explosão de júbilo, aquela embriaguez de satisfação expressa em tantos rostos. Aquela cena se repetia, em toda parte, nos primeiros anos de seu governo, onde quer que aparecesse Hitler ou se detivesse o seu carro, ainda que somente por alguns instantes.

Talvez seja compreensível que também eu me sentisse arrastado por aqueles transbordamentos de veneração. Mas, para mim, muito mais impressionante era falar, minutos ou horas depois, com aquele ídolo de um povo, sobre planos de obras em construção, sentar-me ao seu lado no teatro, ou comer com ele raviólis na osterìa. Esse contraste era o que exercia um fascínio sobre mim.

Se, há alguns meses antes, eu estivera entusiasmado com a nova possibilidade de realizar as construções, agora estava inteiramente submetido à influência do feitiço de Hitler, a quem eu me entregara, inconscientemente, sem capacidade nenhuma crítica. Eu estava disposto a acompanhá-lo em toda parte. Procedendo assim, Hitler pretendia, evidentemente, proporcionar-me uma gloriosa carreira de arquiteto. Anos depois, na prisão de Spandau, li a opinião de Cassirer a respeito dos homens que pelo seu próprio impulso desdenham o mais alto privilégio do ser humano: o de serem pessoas donas delas mesmas.

Eu era então um desses homens.



Duas mortes, em 1934, tiveram efeitos de ordem particular e pública. Troost, o arquiteto de Hitler, faleceu no dia 21 de janeiro, depois de semanas de muitos padecimentos. E, no dia 2 de agosto, morreu o presidente do Reich, Von Hindenburg, abrindo-se assim para Hitler o caminho rumo a um poder sem nenhum limite.

No dia 15 de outubro de 1933, Hitler, solenemente, colocou a primeira pedra da Academia de Arte Alemã, em Munique. Para bater na pedra utilizou-se de um martelinho de prata, que Troost desenhara especialmente para naquela cerimônia. O martelinho fragmentou-se em vários pedaços. Quatro meses depois, falando conosco, Hitler disse:

- No mesmo instante em que o martelo se partiu, pensei comigo: "Isto é mau agouro! Vai acontecer alguma coisa!" Agora já se sabe por que o martelo se quebrou: o arquiteto tinha de morrer.

Não foram poucas as ocasiões em que testemunhei a superstição de Hitler.

A morte de Troost também significou uma grande  perda para mim. Precisamente, estava se iniciando entre nós uma amizade, da qual eu esperava muito, tanto sob o ponto de vista humano como artístico. Funk, subsecretário de Goebells, naquela época, tinha uma opinião diversa da minha sobre o assunto. No dia que faleceu Troost, eu o encontrei na ante-sala do seu ministério, com um grande charuto no meio de sua cara redonda. Disse-me:

- Meus parabéns. Agora o senhor é o primeiro.

Eu tinha então vinte e oito anos de idade.

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